terça-feira, 17 de novembro de 2009

O mundo e o seu umbigo

Atire a primeira pedra aquele que nunca teve que agüentar essa frase seguida de um malicioso tapinha na cabeça. Mãe, pai, amigo, prima, namorada, tanto faz o algoz, basta que alguém invoque o aclamado clichê para que uma discussão corra o risco de ser encerrada. Admito que nunca tive a intrépida cara-de-pau de responder à pergunta tão recheada de retórica. Mas num domingo calorento desses, jogado ao sofá após mais um espetáculo rubro-negro regado a cerveja, tive um relance de inspiração enquanto assistia a “minha revista eletrônica” dominical. E se o mundo realmente girasse ao redor do meu umbigo?

Nesse iluminado domingo uma pergunta me fez perceber um fenômeno para o qual nunca havia aberto os olhos. Uma pobre equipe de reportagem saía às ruas com a missão de saber “o que você fazia quando...?”. Mais uma vez, diante da falta de conclusão sobre determinado tema e a necessidade de repercutir (falar por falar), o shownalismo travestido de filme policial tornava “o meu, o seu, o nosso” cotidiano em notícia. Terminada a reportagem, me diverti por horas imaginando como seria se, de fato, os fatos fossem narrados de um outro ponto de vista.

Na última terça-feira, por exemplo, Maria saiu do trabalho e pegou dois ônibus para ir pra casa. Subiu alguns lances de escada, teve dificuldades para abrir a porta pois a fechadura estava emperrada, mas com jeitinho conseguiu entrar devagar. Deixou as compras na mesa e foi tomar uma ducha fria, afinal já estava com o corpo mole de tanto calor. Pensou no dia, nos filhos, no marido que já não tem mais e faz falta, e no terceiro bico que arrumaria na semana para garantir o tradicional tender com cidra no natal. Saiu do banho, se enxugou, jogou um vestido poído sobre o corpo e voltou para a cozinha. Como o dia ainda estava claro graças ao horário de verão, não acendeu a luz. Abriu o gás, riscou um fósforo, pôs a água pra ferver e sentiu falta da tímida luz quando abriu a porta da geladeira. Abriu e fechou duas ou três vezes e só então viu que as pedras dentro da forma de gelo começavam a se desfazer. Maria estava mais uma vez sem luz. Assim como outros 18 estados do país.

Em 2001, Paulo Raimundo saiu com os amigos para comemorar o aniversário de 45 anos. Os amigos recolheram as economias de setembro e resolveram bancar o aniversário do compadre. Da roça direto para o centro. Decididos por uma comemoração banhada a cana e mulher, foram direto ao “Marrakesh”, o paraíso das belezas “marroquinas” no coração de Maranguape, interior do Ceará. Paulo se rendeu aos encantos de Jade (sim, em homenagem à novela) e teve sua noite de sultão no Taj Mahal (afinal, norte da África e sul da Ásia são muito próximos) por modestos R$70. Acordou no dia seguinte com um zoológico inteiro berrando dentro da cabeça, vestiu a roupa e saiu ainda cambaleante da suíte-palácio. Sem condições físicas para levantar um facão sequer, o virginiano faltou o trabalho e foi direto para casa. Com 45 anos completos, abriu a porta, se lançou no sofá, ligou a TV e dormiu. Antes de dormir, ainda lembra ter visto, na TV, imagens de dois aviões se chocando contra uns prédios em algum lugar dos EUA.

Poderia passar o dia aqui com outras histórias como o porre homérico do tio Vladimir quando um muro caiu na Alemanha, ou o desespero de Olívia, vizinha de uma grande amiga, para limpar a casa depois no dia seguinte à festa de natal de 2004. No mesmo dia em que no Oceano Índico um terremoto provocou uma grande onda também.

Marias, Paulos Raimundos, tios Vladimir e Olívias estão por aí todos os dias, em todo lugar, a qualquer hora, com suas histórias e fatos. Todo mundo sabe, mas ninguém os conhece. Logo, se ninguém os vê, ninguém é o que são. Só passam a Ser quando um fato faz com que girem em torno de outros umbigos.

Zé Caruso

Vencer, vencer, vencer

Era um grupo de seis rapazes. Conversavam entusiasmados ao saírem do passatempo do final de semana: o futebol, única atividade daqueles que estudavam e trabalhavam o dia inteiro e que só queriam se divertir correndo atrás da bola em pleno sol do meio dia. Em meio aos gritos, o mesmo tema ainda os unia: o futebol. Qualquer um diria “ah, é a paixão brasileira”. Eu diria que isso tudo beira o fanatismo.

Perto do campinho onde jogavam, havia um bar. Ah, não me faça lembrar o nome. Era um boteco onde eles costumavam parar e ver os jogos da rodada do Brasileirão no final de semana. A cerveja gelada fazia a tulipa suar, assim como os rostos dos rapazes. Na televisão, adivinha sobre o que o comentarista falava? Sim, o futebol. Mas não era qualquer futebol. Era o Flamengo – time que comandava o termômetro de exaltação dos seis torcedores da mesa, atentos a cada lance, cada novidade.

A novidade dessa vez não era muito boa. Além de eles não poderem ir ao próximo jogo, contra o Barueri e fora de casa – ah, sim, esqueci de mencionar que eles iam em todos os jogos no Maracanã – o ídolo das últimas vitórias também iria desfalcar a equipe. Suspenso, o atacante Pet vai ver tudo do banco, assim como os torcedores. E ele, logo ele, o sérvio quase quarentão que retornou ao clube por causa de uma dívida antiga, tornou-se um dos grandes ídolos da torcida.

Apesar disso, nada abalava a confiança dos rapazes. “Se o Flamengo ganhar essa, entraremos no G4” - um deles gritava. Pois é, a décima vitória consecutiva do rubro negro já rende lucro para os jogadores, que ganharam R$ 60 mil cada em bônus. E os torcedores, é claro, ganham cada vez mais esperança de que o time poderá ser o campeão do Brasileiro 2009. Aliás, a esperança que já está com eles desde o início, desde o “uhhh” na ameaça de um gol, desde a pelada do fim de semana em que se imaginam fazendo os dribles dos craques, desde a voz que entoa o hino do clube... até a conversa no bar com os amigos.

Jornalista

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Já virou rotina

Primeiro eu pensei que era uma rotina apenas do Rio de Janeiro, mas depois, lendo o jornal de hoje, percebi que não se restringia a minha cidade. Já virou rotina no Brasil e no mundo. Eu prefiro falar de música, cinema, cultura... Mas do jeito que a coisa anda eu não podia deixar de me manifestar.

A violência no país está atingindo níveis absurdos e as drogas só fazem aumentar esses números. Encontramos cada vez mais drogados nas ruas, na televisão, na internet, nas rádios. Filho mata pai, irmão mata irmã, namorado mata a garota dos sonhos, tráfico invade favela, toneladas de maconha e cocaína são apreendidas... Essas são as notícias que o brasileiro - e outras pessoas ao redor do mundo - encontram todos os dias nos jornais.

Li uma matéria no Globo sobre uma operação da polícia de Curitiba - que para mim, até então, era um lugar tranquilo - onde foram apreendidas toneladas de drogas: maconha, cocaína, crack. Não sei o que sentir numa ocasião dessas: fico feliz porque a polícia brasileira foi eficiente e conseguiu fazer o seu trabalho de repressão ou fico triste porque meu país virou rota do tráfico internacional de drogas? Ainda não sei.

Tem até prefeito de cidade mineira se drogando! O candidato passou por um longo período de campanha, conquistou a confiança dos eleitores, derrotou adversários e, finalmente, conseguiu ser eleito para governar a cidade durante quatro anos porque tinha uma conduta que agradava aos eleitores. De repente, sem completar nem um ano de mandato, descobre-se que ele ia até as favelas locais para comprar drogas (crack especificamente). Ai você para e pensa: nenhum político presta. E lembra de todos os casos de José Sarney, Roberto Jefferson, Álvaro Lins... É, já virou rotina, a política brasileira também nos envergonha. E nós, eleitores, ainda somos obrigados a votar!

Mônica Sampaio

Do avesso

Acordei essa manhã e fui direto para o trabalho. Não tive tempo nem para tomar meu café da manhã porque já estava atrasado. Cheguei lá e fiquei imerso nos problemas da empresa até a hora do almoço. Quando fui até a pequena cozinha do escritório para esquentar meu almoço, entreouvi meus colegas conversando sobre mais uma tragédia que passava no noticiário.

- Caramba, atiraram nele. Parece que ele estava caminhando na rua.

Mais uma dona de casa saiu às ruas e matou uma pessoa, um traficante da favela na qual ela morava. Ela atirou contra as costas do rapaz e o tiro lhe atravessou o peito. Tentaram socorrê-lo, mas ele já estava morto quando chegou ao hospital. Foi como na semana passada, quando uma senhora esfaqueou um PM dentro de um bar. Normal isso acontecer hoje em dia. Os traficantes e policiais estão com medo. O governo não sabe o que dizer para acalmar essas pessoas. Estão oferecendo aumentos e folgas.

As novelas só tratam disso. Os jornais, então, nem se fala. É um sensacionalismo atrás do outro. Vários repórteres seguem pela rua procurando e tentando identificar o perfil desses assassinos inescrupulosos.

- Trabalhador, normalmente com família, grande parte de baixa renda, mas existem as exceções da classe média... – ouvi o repórter do telejornal descrever.

Todos na empresa eram potencialmente perigosos. Por isso todo mundo dava sempre um jeito de mostrar como mesquinhos somos, como errada cada parte da nossa vida era. Bárbara, do setor de finanças, ontem mesmo, gritou no meio do salão que anda roubando a empresa, sobretaxando preços como o do café e da copiadora e pegando a diferença para ela. Depois, eu ouvi outras funcionárias invejosas reclamando o quão pretensiosa Bárbara era.

Deve ter algo absurdamente de errado comigo. Eu penso que essa sociedade só pode estar realmente doente. Ninguém mais preza valores como o da família. Só defendem os interesses pelo dinheiro, pelo poder; ninguém mais é honesto, ninguém mais tem caráter. Em que momento a sociedade enlouqueceu? Quando foi exatamente que perdemos a esperança de viver segundo os princípios do respeito e da cidadania?

Nos meus quarenta anos de vida, nunca vi nada mudar. Me pergunto: será que poderei criar meu filho numa época como essa? E meus netos? Estamos no ano de 2109, meu Deus! Será que em algum século alguma coisa poderá mudar?

Ana Cristina, a dona de casa revoltada, foi presa em flagrante. Logo em seguida, foi solta, por falta de provas. Os traficantes da região choram a perda do amigo, e esta tarde realizam uma passeata contra a violência.

Wilma Dantec

Rambo em: a missão final

Seria muito fácil terminar aquele dia sem receber uma ordem direta do Conselho. Diria Conselho pra não dizer Estado, pra não dizer as mais altas patentes militares. Quando esse tipo de coisa acontece, sabemos que o partido rival deu algum furo e chamou atenção demais com suas ações. Em períodos como este, é importante ser discreto.

Estas missões nunca eram complicadas de se realizar. É incrível como quando nos encarregam de algo desse valor eles já têm tudo pronto. Logo ao entardecer daquele dia, o carro que seria utilizado estaria estacionado próximo a um restaurante, nas proximidades do batalhão vizinho. Lá já estariam dois agentes que me dariam cobertura. Logo que o alvo saísse de sua casa de carro, o iremos abordar com permissão de abrir fogo.

Não havia passado das cinco da tarde. Era o tempo para eu me preparar psicologicamente para a missão. A cada dia que passa este tipo de ordem era dada para militares de patente semelhante a minha e já começava a virar rotina. Somos cargos de confiança. Confiança essa que retribuímos com serviços à nossa bandeira. Que retribuímos com nosso silêncio.

Mas por que temos que lutar e matar pessoas que lutam pela mesma bandeira que nós? Algo que me inquieta sempre é o fato de que, se lutamos por um bem maior, se lutamos pelo nosso país, por que fazemos tudo às escondidas? Existem momentos em que parece que a população vive num grau de alienação e aceitação tal que, independente das atitudes do Conselho, não faz a menor diferença. Por mais que as pessoas tenham consciência de algumas coisas, o medo faz com que hesitem em lutar.

Estava vestido com o colete, armas no coldre, roupas comuns, um comum frio na barriga e faltava apenas quarenta minutos para a missão se iniciar. Já era hora de tomar postos e esperar o momento. A rua nunca era muito barulhenta e nesse dia apresentava uma quietude ainda mais sobrenatural. A missão estava algum tempo adiantada e os dois agentes já me esperavam num carro conversível preto de emplacamento civil, como sempre.

Só não posso dizer que aqueles foram os piores minutos da minha vida porque já tinha passado por aquela situação outras vezes e sentia a mesma coisa. Mas algo me dizia que daquela vez não era só isso. Mas o mais importante era manter a calma, respirar fundo, empunhar o rifle e atirar. Atirar em um compatriota. Era uma questão de poucos segundos e terminava o serviço. Mas mesmo assim, a cada dia que passava recebíamos uma nova ordem para executar alguém da oposição e a cada dia ressurge a esperança de que esta será a última vez.

A porta da garagem foi aberta lentamente enquanto um carro vermelho se preparava para sair. Era chegada a hora. O nosso carro estava posicionado próximo à porta da garagem e o cano do rifle já estava preparado e carregado. Era só esperar o carro terminar de sair da garagem e disparar na lataria do alvo mesmo, já que a bala do rifle seria capaz de perfurar o metal. Tínhamos uma boa distância, e com o silenciador, não iríamos levantar suspeitas. Apenas mais um segundo e...

Por um momento acreditei que tudo tinha dado certo, a missão havia terminado e eu só precisava contar com o pé no acelerador do meu comparsa. O vidro ao lado da cabeça do alvo estava banhado de sangue, que deveria ter jorrado de seu pescoço ao ser atingido. O buraco aberto no outro carro estava estrategicamente posicionado onde a bala deveria ter se alojado no alvo, logo acima da clavícula. Assim que nosso veículo arrancou, percebi que o motorista do defunto olhava horrorizado pra trás, quando levantou um pequeno braço pelas mãos. Lá estava um menino, uma criança, que mal deveria ter seus cinco anos, inerte. Enquanto o motorista gritava e saía do carro com o garoto no colo e curiosos se aproximavam, conseguimos fugir. Olhei para o rifle em minha mão. Girei-o segurando pelo cano e aproximei o indicador da outra mão ao gatilho. O metal não estava muito frio. Senti gosto de ferro. Teria sido muito fácil terminar aquele dia sem receber aquela ordem direta do Conselho.

Rambo
26 de outubro de 2009. O Paraná é varrido mais uma vez em menos de um mês. Não, não falo do tornado que atingiu a região e provocou estragos em várias cidades paranaenses em meados de outubro. Refiro – me à ação conjunta da polícia que resultou na prisão de 279 suspeito de tráfico. Situação bem diferente da que assolava a região há pouco tempo, quando bandidos mataram oito pessoas em Curitiba como forma de afirmar o poder do tráfico no local. O desrespeito ao toque de recolher instituído por bandidos foi fatal para quem ousou estar na rua após a hora determinada. Quem matou, disse que não escolheu as vítimas. Nem mulheres e bebês foram poupados da chacina. Afinal, quem manda andar na rua a hora que bem entender?

A prisão em massa obviamente não acaba com o problema da violência e do narcotráfico no Paraná, mas refresca a alma de quem se vê acuado pelo crime. A polícia fez sua parte em mostrar que não abre mão de sua autoridade facilmente. Resta saber se os suspeitos são mesmo culpados e , se for, se vão ser presos. Vale a pena lembrar também que as cadeias do estado sofrem os mesmo males da instituições nacionais. Foi de um presídio de Chapecó que partiu a ordem para a invasão no morro dos Macacos, no Rio de Janeiro.

Outro fato nessa história chama a atenção. Enquanto o Rio de Janeiro ainda se orgulha do polêmico filme Tropa de Elite e prepara a sequência, a operação realizada no sul do Brasil se completou sem que uma pessoa fosse morta ou sequer ferida. Enquanto isso, no Rio... guerra entre bandido e bandido, bandido e polícia, morre um , morre dois, dezenove. E ainda tem gente morrendo. Estamos falando do mesmo país? As balas perdidas não cansam de encontrar vítimas. Deveriam ser chamadas assim porque não conhecem os responsáveis pela ação. Quem coloca uma bala no mundo pode tirar alguém dele. É claro que a geografia carioca privilegia em termos de estratégia os criminosos. Ainda assim, dá para melhorar e muito o método de captura de bandidos por aqui. A polícia do Paraná mostrou que é possível.

Papel

Marina do brejo

Como se não bastasse o miserê todo em que a gente já vive. Decidiram agora discutir CPI do Movimento Sem Terra. Dizem por aí que a intenção disso tudo, na verdade, é apenas dar um pouco mais de movimento ao nosso movimento. É que ele tem estado apagado ultimamente. Depois que a gente parou de despertar olhares curiosos da playboy, nossa auto-estima foi para o brejo. E pior. Nem o brejo é nosso.

A discussão leva tempo. É gente falando daqui, gente gritando de lá e por aí vai. Na minha família, para que se tenha idéia, o problema fundiário tem sido mais importante que a hérnia de disco da minha avó. E essa, coitada, não tem terra nem para morrer em paz.

Eu não sou muito do tipo que concorda com político não. Não gosto dessas coisas. Porque logo vem um e diz que a gente é safado. Mas a tal senadora lá falou bonito com relação a essa CPI. “Investigar só um lado é uma tentativa de criminalização de um aspecto do problema agrário muito maior no Brasil”. É isso. Com a CPI, não só estamos saindo das páginas da playboy, como também estamos entrando na capa da investigateboy. A partir de agora, se é que já não foi sempre assim, os criminosos somos nós.

Eu queria mesmo é ver funcionar CPI que investigasse invasão de familiares de políticos em cargos governamentais, invasão de direitos do cidadão, invasão de privacidade. Essas coisas que acontecem o tempo todo, mas que continuam sempre na mesma. Da mesma forma, no problema em que estamos, para que a CPI funcionasse, o que deveria ser investigado não é quem quer o brejo ou a quem o brejo pertence, mas sim, a quem ele deveria pertencer e em que proporções. Porque, se isso não for feito, o único dono do brejo será a vaca.

Semíramis

Caso de polícia

Como se já não bastassem os inúmeros escândalos envolvendo políticos e Suplicy andando de sunga pelo Senado, o prefeito de uma cidadezinha de Minas resolveu aprontar uma daquelas. João Carlos da Aparecida, do PT de Minas, foi pego em uma boca de fumo de sua cidade, Raposos. E não foi a primeira vez.

Nada contra o cara fumar ou cheirar o que ele quiser, mas ir para uma favela consumir drogas com um carro de prefeitura é petulância demais. Para piorar, depois de chegar à Delegacia e sequer conseguir prestar depoimento, o cidadão teve a coragem de dizer à imprensa que não falaria, usando a desculpa à la Vanusa de que estaria sob efeito de um medicamento muito forte. Crack agora é medicamento? Gostaria de saber que novo tipo de tratamento é esse.

João Carlos pediu licença da prefeitura para tratamento médico. Há quem diga que fez isso pensando em sua recuperação. Mas há cerca de 90% de chances da decisão ter sido tomada para que algo muito pior não ocorresse: seu impeachment. Afinal já foi formada uma comissão para levar adiante o processo de cassação de seu mandato.

Os usuários de drogas pegos em flagrante por policiais têm alegado: “se o prefeito pode, todos podem”, o que era de se esperar. O político que deveria seguir de exemplo e ajudar no combate ao tráfico de drogas, conseguiu subverter a ordem lógica de uma forma nunca feita anteriormente.

Histórias como essa nada mais são do que o reflexo do caos instalado na política brasileira. Não sabemos mais quem elegemos e estamos na mão de pessoas que não sabem separar sua vida pessoal de sua vida política.

Mel

Sossego

Depois de sobrevoar boa parte das minhas terras hoje à tarde, pisei em casa e pude ler o sagrado jornal. Com uma sensação de dever não cumprido porque mais uma vez não consegui vislumbrar toda a minha propriedade, o meu crescente pedaço de “chão do mundo”. Um único dia já não é mais suficiente, agora preciso de dois para fiscalizar os meus protegidos pés de laranja. Mais alguns anos e em três dias já ficaria apertado.

Eu tenho uma espécie de fixação pela propriedade, admito – isso é coisa comum –, uma fixação que começou ainda nos tempos do movimento. O movimento era o dos sem terra e eu, um dos seus inúmeros integrantes. Agora eles são, para mim, como pragas que se multiplicam. Pragas para as quais ainda não inventaram um inseticida específico. Eu era um deles, comecei de baixo, mas passados dois meses eu já freqüentava o alto escalão. No topo só chegam os mais ambiciosos e essa qualidade transborda em mim. Minha avó sempre dizia: “como você é articulado, menino!”; Uma pena ela ter visto que, na verdade, eu sou é um grande articulista...

Já com dois anos de movimento e algumas ocupações – nem sempre de terras improdutivas – no histórico, eu consegui comprar a minha primeira fazenda. Permaneci no movimento e contratei meu primeiro “laranja”, estava formado um verdadeiro ciclo vicioso.

O ciclo: eu comprava mais terras, quase todas as propriedades vizinhas da antiga fazenda hoje me pertencem, continuava no movimento e empregava mais “laranjas”. No entanto, com dez anos de movimento eu sumi do Brasil. Percorri os estados Unidos e a Europa e fui esquecido pelos companheiros de cá. Graças a deus, esquecido, era tudo o que eu queria. Saí do movimento e, por ironia, troquei meus 15 “laranjas” por incontáveis laranjeiras.

O motivo de ser deste registro não é qualquer arrependimento passado, mas sim a irritação causada por uma reportagem.Tenho dinheiro, terra, família. Já plantei muitas, mas muitas árvores, mesmo que todas iguais, e não escrevi nenhum livro, nem nunca quis. Ainda assim arrumam um jeito de tirar meu sossego.

A página 8 do jornal de hoje me mostrou que lá de Washington (que eu já visitei quando larguei o movimento) a Senadora Marina Silva pretende modificar a CPI dos assuntos agrícolas. Graças à minha imunidade latifundiária, até então eu estava tranqüilo, mas o problema é que a tal senhora de óculos quer incluir o que ela chamou jocosamente de “ruralistas” nas investigações. Não gosto dessa expressão, mas até onde eu sei, ela se refere ao grupo do qual faço parte. Mas, pensando melhor eu pergunto a vocês: Será que o Brasil está realmente mudando? E por quê, logo agora que eu me dei bem?

Jean Baptiste

Aprenda a se candidatar à presidência

Quem se lembra das eleições de 2006? E de uma candidata da oposição que defendia as questões “esquecidas” pela maioria e a participação das mulheres no poder executivo? Então, a nova feminista do poder político é a provável candidata à presidência pelo Partido Verde. E de tempos em tempos, ela apresenta suas opiniões de maneira exaltada, que sempre ganham destaque no alto da página da editoria País.

Desta vez, a senadora, pretensa presidente, questionou a CPI do MST. Como pode apenas um movimento ruralista ser investigado? Existem tantos movimentos agrários pelo país. Vamos investigar todos! Candidata nova da vez é assim: ganha espaço no grito.

Nas eleições de 2006, a candidata da blusinha branca de babados (uniforme de guerra!) gritou tanto no palanque que hoje ela é mais reconhecida e, claro, lembrada por causa do seu saltitante dente no meio de um discurso do que pelas suas ideias. (O que ela falava naquele momento mesmo?)

Por outro lado, a bola da vez, nem precisa abrir a boca para se tornar destaque. Esta dá aula de como aparecer na mídia e já é favorita nas pesquisas. Existem tantas coisas que ressaltam seu nome: apoio político, visual novo, calúnias sobre seu passado, doença grave etc. Quem precisa abrir a boca, antes do tempo, numa situação dessas?

Enquanto isso, o velho discurso da luta contra o preconceito de gêneros e das minorias ecoam entre os pequenos candidatos, os ataques ao discurso dos concorrentes também. Mas é assim que funciona, se não tem o que propor, o caminho é criticar o já dito e com veemência. Resumindo, criem polêmica! “Os atos falhos falam mais do que o discurso”, que frase de efeito! Toda aquela concepção de Freud junto com a análise do discurso... Nada disso. Apenas um ataque da emergente candidata a forte concorrente. Ela seguiu a lógica do: fale mal, mas com eficiência. Tal declaração ganhou destaque como subtítulo na página do jornal.

A época de eleição, e olha que ainda nem chegamos lá, apesar do chato horário eleitoral, também nos proporciona vários momentos de risos, piadinhas infalíveis feitas pelas mentes mais capciosas e criativas, as sacadas dos marqueteiros, a disputa de ibope na mídia etc. Mas, o candidato que se sobressai é aquele que apresenta uma causa que apenas ele defende.

A nova “Heloísa Helena”, só que revestida pelo PV do Acre, acredita que ela é a única candidata que se importa com a questão ambiental, em um momento que discutimos a poluição do meio ambiente em mesa de bar e trocamos nossas sacolas plásticas por sacos ecológicos. Pois bem, fiquem de olho se alguém quiser mencionar a questão ambiental na sua plataforma política, será uma ideia totalmente copiada da fértil mente da senadora acreana.

Qual será a próximo argumento dos pretensos candidatos para aparecer? Dou uma dica: crítica ao programa Bolsa Família. Talvez dê uma nota na primeira página.

Raposa do Pequeno Príncipe

Paraná

Não há dúvidas. A economia dos locais atingidos pela operação da Divisão Estadual de Narcóticos foi fortemente afetada. Campo Magro agora deve estar anoréxico, Almirante Tamandaré afogado, Colombo perdido de sua rota e Agudos do Sul mais boleado do que nunca. Foz do Iguaçu, então, agora secou de vez, com certeza. As palmas distribuídas nos jornais do país atestam a eficiência do que seria (impressionante!) o começo do “Paraná contra as drogas”, nome que inspira uma verdadeira mobilização generalizada e emocionante. Parabéns às divisões policiais envolvidas, que, até onde meus contatos e, assim, minha vã coleta de informações alcançam, saíram de moral limpa. E é claro, literalmente limpos, seus rostos tampados e braços musculosos estampados nos jornais. Tudo sem sangue.

Pensando em sangue, tenho uma proposta a fazer. Lembrando das últimas semanas de confronto entre polícia e tráfico no Rio de Janeiro... Veja bem, eu disse confronto, nada que remeta ao positivismo do nome e à assepsia da operação paranaense. Bem contrário, até. Mas acho que não preciso recorrer à origens das palavras ou dicionários para me fazer entender, tenho certeza de que o carioca tem prática, e nada como a prática no assunto para te fazer especialista nos jargões.

Pois eu me pego imaginando possibilidades pra lá de imaginárias. Imagina só (com força, eu sei): a polícia resolvem extender o exemplo do Paraná, só que no Rio. Desconsiderando toda a guerra civil antes deflagrada e chegando direto ao ponto da suposta glória policial, claro. O tráfico estaria absolutamente desarticulado, enfraquecido, as comunidades livres do domínio do comércio das drogas. Do comércio das drogas. O caminho está livre para novas possibilidades de domínio. E agora, o que seria dos milhares de demitidos pelo tráfico, das comunidades órfãs? Uma solução imediata: novos caminhos seriam abertos, ou ainda mais abertos, estuprados, escancarados para as formas de domínio alternativas. Foi tudo o empurrãozinho fantasiado de empurrão que a milícia precisava. Nada como uma boa política de exploração de serviços e submissão das comunidades para garantir aquele lucro.

Claro que a gente sempre pode pensar pelo lado otimista da questão. É quase que uma política de aquecimento e reformulação da economia narcotráfica. Com a operação, o material novinho, que acabara de chegar e nem embalado estava, veja só, todo perdido (sabe-se lá para quem). O tráfico restante, depois de reorganizado, vai precisar de novas remessas. A dobra da demanda vai estimular a produção. A oferta vai ser duplamente maior. Duplamente econômica! Duplamente lucrativa!

Joaquim Lima

A minha anta é o Stallone

Candidato novo a presidência precisa se armar até os dentes para entrar no campo de batalha do planalto, local de muitas baixas, baixarias e briga de saltos altos. Seja para se diferenciar dos políticos cara (plataforma) de paisagem, seja para se apoiar no anseio do povo pelo sangue dos mesmos. A novata Marina se veste de verde (graças a Deus não com aquela sunguinha rosa do Gabeira), entra chutando a porta e descarregando sua metralhadora giratória. Com um “quê” de Rambo, se me permitam o trocadilho silvestre (de selva, não do Stallone). Bem diferente de seu falecido mentor Chico Mendes, uma comparação que me agradaria bem mais de fazer do o troglodita que não perdoa ninguém. Como disse o soldado preso em cativeiro para o terrorista comunista no primeiro filme “Deus perdoa, Rambo não”, na tentativa mais infame de engrandecer um personagem. Mas não é que funcionou com ele, quem sabe sabe Marina não adota uma faixa vermelha e consegue chegar até a quarta versão. Sonho secreto de nosso atual presidente, que está mais para Denny DeVito.

Marina fala mal de CPI aqui, critica chefe da casa civil ali e nas horas vagas se dedica ao hobby favorito de todo candidato, criticar a plataforma dos outros. Afinal, quem não critica se trumbica... Ou algo do tipo. A nova filiada do PV parece ter ficado incomodada pelos outros pretendentes ao cargo do pingüim do Batman terem acrescentado ao seus discursos o seu “ganha voto”, o meio ambiente. Esperneio para a mãe, choramingou para o pai, mas seu dedo de politica não resistiu e logo saiu por ai apontando seus inimigos em local público. Visto que agora que esse tema se tornou preocupação de boa parte do eleitores não há nada mais natural que isso aconteça. Sua irritação pela popularização da plataforma que parece ser algo não natural. Assim como a CPI do MST.

Falar mal de politico que é sim algo natural. Eu faço, Marina faz, Diogo faz. Mas o que diferencia Mainardi de mim é a anta. E o que diferencia Marina dos outros é o Stallone. Não venho aqui pisar em uns e defender outros. O que só não em desce bem é politico que se exclui da sujeira do seu local de trabalho... Ah! E é claro de ter um presidente que se candidatou como o guerreiro salvador estilo Schwarzenegger e por passe de mágica da sessão da tarde se transformou no irmão gemio DeVito.

Jefferson Rocha

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O alpiste

O garoto astuto e perspicaz vestia terno, gravata, bermuda e ceroulas, embora estivesse quente – insuportavelmente quente. Quente e abafado, quente e moroso, asfixiante e desértico e todos os adjetivos pertinentes e impertinentes como esse calor, esse calor quente. Ele era levemente vesgo, torto, caído para os lados, às vezes hesitando à esquerda das calçadas, às vezes à direita dos transeuntes. Ele parecia pensar o mundo e todas as coisas e todas as coisas pertencentes ao mundo e tudo, absolutamente tudo – tudo – ao mesmo tempo. Parecia genial e imbecil, às vezes sobretudo imbecil, às vezes sobretudo genial. Pouco sobretudo genial.

Imbecil, de fato. Não era destacável, não era bonito, exageradamente estranho, gordo ou magro. Era mesmo inútil e descartável, gostava de Thomas Mann, Alison Krauss e Visconti; começara a estudar termodinâmica aos 8, envolvido com experimentos hercúleos inflamados pela obscuridade da garagem. Ele moldava tapetes e criava acácias, plantava sobriedades e colhia mexilhões; e sim, isso era perfeitamente possível. Gostava de ceroulas e trapaceiros, gostava dos dados, das prostitutas e das alegorias carnavalescas – e gostava de Michael Caine pouco pelas atuações magistrais e muito pelo trocadilho narcótico e infame.

E andava alegre e distraído pelas ruas de Amsterdã levando os mexilhões para passear; e sim, isso era perfeitamente possível. Ele colocava apelidos nos animais e mantinha segredo sobre os apelidos colocados. E preferia chorar lágrimas contrárias à gravidade, tentando tornar possíveis, também, esses desvarios.

Malaquias veio ao jovem e disse, profético e apocalíptico:

- O parnasiano comprou flores, visitou os vasos e terminou tocando o derradeiro tango argentino.

E o menino respondeu, truculento:

- Mas e se as mágoas taciturnas de Vinícius estivessem aqui, seríamos tão infelizes?

Ele contava, então, com apenas 6 anos de amargura e alcoolismo. E discursou:

- Sente-se e espere meu monólogo sobre a dialética.

Malaquias sentou.

Eles estavam próximos à avenida Dimensional IV. O enxofre estava próximo, e os mexilhões sentiam o vento indicando o aroma atípico e casual. O garoto arriscou levantar as pálpebras; e olhou a placa metálica e ilegível, anunciando: “Todos os artefatos inexistentes do universo e a biblioteca de Babel”.

E o monólogo começou:

Mamãe eu quero o prisma eu quero aquele prisma pra mim eu quero eu quero e mamãe por que você não me dá o prisma ele é bonito ele é azul ele é verde e é todas as cores olha só mamãe por que você não olha pra mim por que você está com essa roupa e por que você nunca me dá nada e por que o prisma é verde mamãe mamãe eu quero quero quero e eu quero e você vai me dar porque você é a minha mãe e você é tudo e você é todas e você é a absoluta imprecisão das verdades reverberantes e magnéticas do desfalecimento da memória. Mamãe, mamãe eu te amo e você me ama mas me dá o prisma me dá o prisma ele é bonito ele é lindo ele é lindo e eu vou ter cuidado e vou estudar fazer os deveres e chorar e nunca chorar e eu não sei mamãe, mas você me ama, mas você me ignora e você nunca olha pra mim e eu quero morrer porque você não me deu o prisma e pronto, morri.

Ele buscou a mochila, comprou o pacote, vendeu as imagens e terminou, enfim, acalentado pela melodia do Chico.

E amanheceu pacífico; e tudo era perfeitamente normal e aceitável.

Ou não.


Pato Donald

O idiota

O idiota é aquele sujeito que passa com o carro na poça só de sacanagem. Um minuto depois, você está completamente molhado e ele, rindo. Pode ser também o que fala algo incompreensível, só para você pedir para repetir e ele fazer uma gracinha depois. Um legítimo boçal não mede esforços para te tirar do sério. E é chato. Ri sozinho das suas piadas, conta várias vezes a mesma história e insiste em tocar em você durante o papo. E aquele que se acha um comediante stand up e te critica para uma platéia em alto e bom som? Não tarda a falar das suas gordurinhas a mais, da roupa que você veste e o que fala. Esse tipo seria capaz até de fazer uma crônica que criticasse pessoas. Como essa. A diferença é que eu não sou idiota e nem chato. E ai de quem disser o contrário!

Existe também o babaca ilustrado. Esse prefere problematizar sistematicamente uma situação cujo enfoque contextual ensejaria obviamente uma ótica mais adequada ao entendimento global. Ou seja: complicar o que é fácil. Outra versão é o Einstein. Para ele, tudo é relativo. Está sempre em cima do muro. Vale lembrar que tudo que está sendo dito aqui serve para as mulheres. Vamos usá-las para introduzir o marco da pós – modernidade: a geração de plástico. Essa espécie rejeita a condição humana e persegue vorazmente o modelo boneca fashion. Em alguns casos, você aperta a barriga delas e ouve frases prontas. Tem umas que chegam a falar cinco frases! Super legal.

Idiotas não entram em extinção. Eles se multiplicam. Acho até que as pessoas devem gostar deles. Por que não somem? Para onde quer que você vá, não importa quando, esteja certo de cruzar com um. Talvez haja um pouco deles no DNA de todos nós. Tem sempre um idiota no espelho mais perto de você.


Papel
- Tá bom, mãe. Pô, já falei que eu vou voltar de carona.

- Mas se cuida, então.

- Até parece que não me conhece, mulher! Beijos.

Pedro se considerava um adolescente normal que errava dentro da medida do esperado para os adolescentes comuns dos “tempos de experimentação”. Tinha tido algumas namoradas, traiu a primeira com a segunda e essa com a posterior, mas nada de caso pensado, e não que achasse isso certo. Simplesmente ele não parava para pensar muito a respeito e, afinal, ele não tinha prometido amor eterno. Achava sempre que com a atual é que era, essa sim, um relacionamento maduro.

Era do grêmio da escola e implicava com o pessoal do clube de xadrez, mas não chegava a sentir especial prazer nas perseguições organizadas pelos por alguns amigos. Também não se manifestava contra. Recebia uma mesada que dividia em duas parcelas: uma para comprar um carro e a outra para saídas. Saídas que envolviam beber, mas dezessete anos é quase dezoito e ele se considerava extremamente equilibrado e consciente.

Nunca chegou a pegar o carro da mãe e sair alcoolizado, mas aceitava uma carona ou outra quando considerava que o estado do motorista não representava perigo. Já era uma grana que economizava no táxi. Matava algumas aulas como todo mundo da sua idade, mas nunca chegou a perder o ano. E o curso de inglês era tão chato! Ele queria mesmo era fazer um intercâmbio, mas não sobrava dinheiro pra isso.

Jogava altinho na praia nos fins de semana e lá se envolvia com todo tipo de gente. No posto 9 de bermuda e sem camisa você não sabe quem é quem. Um dia foi chamado pra uma festa num sítio e lá rolou maconha. Ele aceitou, só pra ver como era. Nunca pensou em virar dependente ou coisa assim, ele não era cabeça fraca pra isso. A mãe queria saber de quem era o churrasco, ele disse que era de um amigo e não contou qual. Não era de nenhum amigo, mas era amigo de amigo, e ele tinha carona pra voltar.

Pra quem nunca tinha fumado nem cigarro convencional, até que ele foi bem. O problema é que os vizinhos, já cansados daquele tipo de festa com seu cheiro e o som nas alturas, ligaram pra polícia. Tinha tanta bebida, e ele, menor de idade, correu com todo mundo pra entrar nos carros, pular o muro ou o que fosse pra não ter que acordar a mãe no meio da noite e depois ouvir lição de moral em casa. Colocou uma garrafa de vodka embaixo da camisa, ele sempre quis uma garrafa daquela vodka polonesa, e se ela ali ia ficar pros policias.

- O que é que você tem aí escondido?

- Nada, pô.

- Então joga no chão e bota a mão na cabeça.

- A mão na cabeça? Há há, ta maluco. Não sou pivete não, porra.

- Joga essa merda no chão e bota a mão na cabeça.

“Ah, fala sério! Que PM babaca.” A reação foi rápida, ele ia tirar a garrafa e mostrar logo o que era, mesmo se ele tivesse que ser levado, depois ele se entendia com a mãe. Não era possível que ela achasse que ele nunca tinha bebido ou fumado um baseado. “Merda!”, o policial atirou. Atirou de novo. Foram dois estalos secos. Um nas costas e o outro na direção do ombro esquerdo.

O celular tocou. A mãe sempre achava que nessas festas de adolescente nunca tem comida e ela queria dizer que não tinha nada demais na geladeira, mas tinha dinheiro pra pedir alguma coisa, se ele chegasse com fome. Não seria necessário.


Srta. Bones I

A.R. - 15

14 de maio de 1991: Maria Silva vem do Nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro.

Até aqui, nenhuma novidade. Maria é apenas mais uma mulher que veio para a grande cidade em busca de ilusão. Sem nenhum estudo, planejamento, dinheiro e expectativa acabou por morar em uma espécie de cortiço no alto da favela da Rocinha.

Humilde mulher, com apenas 19 anos começou a trabalhar em uma linda mansão em São Conrado em troca de um pouco de dinheiro e um pouco de estudo.

Casou-se com Anderson Ribeiro,um rapaz igualmente jovem da própria comunidade, e passou-se a chamar Maria Silva Ribeiro. Juntos construíram um pequeno lar com apenas um quarto e uma cozinha/banheiro.

Engravidou 5 vezes, mas apenas o último filho vingou. (os dois primeiros morreram na gestação e os outros 2 não passaram dos 4 meses de vida).

Porém, quando seu quinto e único filho passou do primeiro ano, quem morreu foi seu marido. Causa da morte: bala perdida.

A mulher de nome santo estava sendo apunhalada pelo fantasma da morte mais uma vez.

Ela já havia passado pela dor da fome, a dor de não ter um lar, a dor da decepção de ter abandonado a sua terra natal em busca de uma ilusão. Ela sentia saudades das suas irmãs, sentia saudades de seus pais, já tinha sido espancada sem motivo, mas ela tinha certeza que nada se comparava a dor de perder alguém que se ama. (e pela quinta vez ela sentia essa dor).

Por mais que ainda tivesse um filho, Maria sentia-se sozinha, Maria não queria mais viver... De luto, toda favela se apagou e chorou com Maria...

Rio de Janeiro, ano de 2009. A Rocinha cresceu, ganhou uma nova dinâmica e muitas novas “marias” que vieram tentar a sorte no Rio de Janeiro.

O tráfico de drogas cresceu assim como o número de tiroteios, o preconceito e medo dos moradores da Zona Sul e Oeste em relação à Rocinha. Mais do que nunca morador de favela virou sinônimo de bandido. (grande tolice da humanidade...).

Realmente não é nada fácil você ser o elo fraco da desigualdade social, não ter o que comer e o que vestir no frio e ainda conseguir dizer NÃO para as ofertas ilícitas, porém fáceis de conseguir dinheiro. Mas felizmente existem pessoas que conseguem dizer “não”.

Na própria Rocinha, das muitas “marias”, um jovem se destacava por essa força de vontade.

Era alto, moreno escuro de cabelos lisos e negros. Seu corpo raquítico suportava uma vontade de crescer na vida sem igual.

Vendia doces em sinais de trânsito e cerveja nos finais de semana de sol nas praias da Zona Sul. Com o dinheiro que arrecadava ajuda sua mãe, comprava cadernos, livros e juntava o pouquinho que sobrava para um dia comprar tênis especiais para prática de corridas. Era um dos poucos jovens de sua região que lia com perfeição e que era ótimo em matemática.

Por sinal,seu talento em matemática chamava a atenção dos chefões do tráfico que insistiam em chamá-lo para trabalhar junto com eles como uma espécie de tesoureiro. Mas ele de forma inacreditável negava o convite sem despertar a ira deles.

Ele sempre falava que queria ser exceção. Se no morro todo mundo era bandido, ele não ia ser. Se todo mundo não sabia ler, ele ia saber com excelência. Se todos usassem drogas ele seguir a vida em pró da saúde e do esporte.E seguindo esta lógica ele superava-se a cada dia o que só alimentava o seu sonho de ser médico e/ou maratonista.

No dia 2 de outubro, seu lado atleta falou mais alto que seu lado médico e ele não trabalhou, não estudou. Tirou o dia para ficar concentrado na praia de Copacabana aguardando a escolha da cidade sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Sonhava com a escolha do Rio, pois acreditava que poderia ter a chance de competir na Cidade Maravilhosa.

Acho que nenhum dia foi tão longo para ele quanto o 2 de outubro de 2009. E quanto mais próximo ficava da anunciação, mais ele sofria.

Eis que na TV, um gringo de cabelos brancos deu a esperava notícia: O Rio iria sediar as Olimpíadas de 2016.

Neste momento seu lado maratonista praticamente anulou seu lado médico. Ele gritava,chorava e sambava ao som da bateria do Salgueiro. Teve vontade de ir correndo de Copacabana até a Rocinha para já ir treinando, no entanto, chegando no Leblon seus pés descalços não aguentaram e ele pegou um ônibus.

Ao chegar à favela, iluminou o morro com seu sorriso. Sua mãe tinha medo dele se iludir, afinal sabia que dificilmente seu filho ia ter a oportunidade de ser descoberto pelo esporte, mas naquele dia, ela não falou nada e deixou seu menino sorrir.

Uma semana depois, uma operação policial a fim de começar a eliminar a criminalidade na cidade eleita como sede das Olimpíadas de 2016, invadiu a Rocinha de madrugada. O morro que estava até com uma atmosfera melhor, uma vez que fora convencido por um menino raquítico que aquele lugar ia melhorar por causa das Olimpíadas, voltava a viver o terror da realidade.

A noite escura foi iluminada não mais por um sorriso, mas por tiros de fuzis.

Na manhã seguinte, os moradores viram pela janela o resultado na noite de terror. Inúmeros corpos estavam espalhados pelos corredores estreitos da favela. A fúnebre cena e o medo de ainda não ter acabado impedia que muitos saíssem de seus barracos.

O único som que abalava o silêncio daquele lugar era o choro de uma mulher, um choro que a Rocinha não escutava há 14 anos. Era o choro de Maria Ribeiro que em total desalento abraçava o corpo de um rapaz alto, raquítico, de pele morena escura e cabelos lisos e negros. O rapaz atirado no chão era André Ribeiro – 15 anos. O quinto, único e último filho de Maria Ribeiro – 27 anos que perdeu a sua vida por conseqüência das primeiras medidas para melhorar o Rio de Janeiro – a sede dos Jogos Olímpicos que André tanto sonhava em participar.


Vento

Casa

Não sou do tempo em que se nascia em casa, tempo de parteira e tempo de espera. Já nasci nos 80, época mais recente, em que as mães saíam de casa rumo ao hospital para voltar com mais um integrante da família. O dia marcado para o nascimento, aliás, é um daqueles momentos inesquecíveis, que marcam a vida da gente. Bolsas de roupa, fraldas, mãe, pai, apreensão. Momento final: o bebê. Ou momento primeiro, olhando com os olhos de quem vê ali uma vida nova, ponto de partida.

Mas não é sobre bebês ou tampouco parteiras que vou falar no texto que segue. Queira o leitor compreender que, estando fora de casa, bate agora uma falta daquela coisa boa do lar. Quarto, sala, cozinha. A casa da gente guarda uma vida própria. Cheiro de casa, gosto de casa. Eu sinto que, dentro dos limites impostos pelas paredes desse lugar único e particular, eu sou eu, você é você e ela pode até ser ele, se assim quiser. Dentro de casa todo mundo é invisível – para o mundo – e transparente para si próprio.

O dia de trabalho acaba, fecho a porta. Quero deixar pra fora o espanto da liberdade, o cansaço das coisas vividas. Acontece que – fato imutável – tudo isso tem vida própria e, pelo buraco da fechadura ou na sola do sapato, tudo entra comigo. Inevitável. Eles entram em fila. As conversas pendentes, textos pra ler, a bronca do chefe, o salto do sapato novo quebrado... Tudo se mistura e, no final do dia, vai pra casa comigo.

O que foi bom, o que formou no rosto um sorriso grande naquele dia, eu guardo na caixa de madeira do lado da cama. Do lado da cama. Deve estar perto para que eu possa sempre lançar mão quando o mais difícil na noite é ter bons sonhos. Abro a caixa, escolho um. O telefonema da amiga da escola, o olhar querendo dizer muito, a sobremesa tão esperada durante toda a semana... Não, não! Hoje vou escolher o oi da saída do elevador. Coloco debaixo do travesseiro e durmo melhor. Para quem pensava que passava invisível aos olhos dele, ganhar um oi despretensioso teria mesmo que valer um sonho.

Um sonho ou até dois, um conjunto deles. Durante toda aquela semana não precisei da caixa de madeira. Ela só se enchia cada vez mais das coisas boas.

Essa é a magia da casa, pra mim. Saber que precisando ou não do afago certo que ela dá, ela vai estar ali. Imóvel, literalmente. É como a minha caixa que, como um consolo, eu vejo todo dia e sei que se os fantasmas chegarem – esses que se escondem debaixo da cama, na porta do armário e na sombra da parede – ela vai estar ali, e meu medo vai passar. Ela cala, ela fala. A casa.

Como se mata uma lembrança

Uma frase de Adriana Lunardi me pegou pelos pés. “A existência, como se sabe, é uma noção dada pelo tempo”. Se tudo que já aconteceu só deixa certeza de sua existência pela lembrança deixada, o tempo faz questão de apagar. É preciso isolar até matar de solidão o que nos liga ao passado indesejado. Conto lhes como exemplo a história de um amigo de um amigo meu. Mesmo sabendo todos os detalhes do acontecido juro de pé junto que não fui eu:

Adriano sempre se surpreendeu com sua falta de bom senso. Não bastava já morar na mesma rua que Ana, tinha que se oferecer para cuidar do cachorro enquanto ela viajava? “Não se preocupe Adriano, Thor já te conheci, não vai dar trabalho algum” ela falou ao telefone enquanto ele anotava tudo que era preciso fazer. Regar as plantas, recolher a correspondência e deixar na estante sobre a pia. “Para que eu estou falando isso se você já sabe tudo?”. Adriano sabia mesmo? Sabia nada! A mais de um ano Ana era só uma lembrança desbotada. Hoje nem mais a cor de seus olhos ele conseguia se lembrar com certeza. E mesmo que continuasse sem a ver, a ideia de cuidar de Thor por amizade soava cada vez mais ridícula.

No dia seguinte, por pouco os joelhos não falharam e provocaram a sua queda no meio da sala. Estranhamente ainda a mesma sala, intacta de antigos verões, até o controle remoto continuava no lugar de sempre, escondido no vão da almofada esquerda do sofá. Só as paredes que não mais tinha as fotos do antigo casal. Para Adriano isso fora um choque. Ele percorreu a casa com Thor em seus calcanhares balançando o rabo de alegria. Ascendeu um cigarro para disfarçar o perfume de Ana impregnado no ambiente. Foi até o aparelho de som e tirou o cd do Chico Buarque, que de tanto tempo que estava ali não se sabia o paradeiro de sua caixa. “Coloca Chico pra gente Dri?” falou Ana através da voz azeda de Adriano. “Chico agora vai dormir! Chegou a vez do Jorge Ben”. E ele colocou um antigo cd seu perdido em meio aos muitos dela. Sem seu cheiro e sem seu barulho aquela casa já não lhe causava tantos calafrios. Havia usado a mesma tática para apagá-la do resto da sua vida.

Só depois disso ele deu o primeiro afago em Thor, que então deitou num canto e liberou a casa para ele. Adriano foi sozinho até o quarto, evitando fazer qualquer barulho (para ninguém). Ainda azul, ainda com os mesmos objetos e com a mesma mancha de cigarro no tapete, culpa dele. Mesmo se as paredes falassem não diriam nada, só o encarariam com um silêncio constrangedor. Adriano abriu o armário e se deparou com a primeira mudança. O conteúdo já não era mais tão igual assim. Pegou nas mãos um vestido que nunca vira antes (e mesmo assim, a cara de Ana) e seguindo uma vontade sem explicação, o vestiu. Alisava a próprio corpo em frente ao espelho. Os peitos deixavam a desejar, mas o quadril trabalharia muito bem nas ruas de Copacabana. Jurou pela coca-cola que tomava que não havia nada demais no que estava fazendo. Adicionou um chapéu e um charpe à Adri-Ana. Mas na procura de algo melhor encontrou sua antiga jaqueta. No susto, deixou o cigarro cair e queimar novamente o tapete, mas não era pra menos, andava procurando aquela jaqueta a mais de um ano. Era sua favorita. E de Ana também. Não fazia ideia de que ela estava ali, de que parte dele ainda estava dentro daquele armário.

A brincadeira perdera toda a graça, Adriano resolveu desligar a música e ir dormir.

Sonhou com sua jaqueta e com Ana dentro dela. Ela vinha em sua direção com seu olhar dengoso, que há muito não via. Pronta para dizer algo. Ele interrompe. “Essa jaqueta é minha!” Ela fecha a cara. “Você veio aqui por causa de mim ou da jaqueta?!”. Ela tira a jaqueta e joga nele. “A jaqueta ainda é minha, você não...”

Adriano acorda ao som da campainha berrando. Assustado corre até a porta. Atende sem pensar. É apenas o carteiro vestido de amarelo e ele recebe as cartas de vestido longo de flores do campo. Deixa as cartas na estante em cima da pia e nota que ainda não fizera nada que lhe foi pedido. Thor lambia um pote vazio em desespero e as plantas murchavam. Adriano correu contra o tempo e contra a irresponsabilidade que iria cair em seus ombros. Ana daria um chilique com certeza.

Foi devolver o vestido apresado, mas não que por muito acidente encontrou um caixa de sapatos no fundo do armário. Ele abriu, mesmo sabendo o que isso iria dar no fim. Estava tudo ali em fotos. O primeiro encontro a viagem pra Búzios o segundo aniversário de namoro o natal na casa da família dela o dia que Thor nasceu o primeiro aniversário de namoro Adriano dormindo Thor dançando Chico o último encontro Adriano lavando a louça de vestido Ana gritando numa montanha russa o último aniversário. Fotos que antes se penduravam na sala, no quarto e até tinha uma bem engraçada no banheiro. Adriano pegou sua favorita chorando sem fazer barulho e guardou o restante. Picou em milhares de pedacinhos e misturou na comida de Thor, na água para as plantas e nas cinzas do cinzeiro. Trancou a porta e foi trabalhar com sua jaqueta.


Jefferson Rocha

Gente boa

Jesus era gente boa. O Senna era gente boa. O Dom Pedro II, dizem, era gente boa. A madre Teresa de Calcutá era gente boa. Também o Zumbi, a Chiquinha Gonzaga, o Martin Luther King, o Gandhi, Saão Francisco de Assis, enfim... todos gente boa. Mas essa galera toda, infelizmente, já morreu. Fazer o quê? Paciência. Todo mundo tem que morrer um dia. Agora gente boa, boa mesmo, pra mim, é o Sarney.

Pára pra pensar. Homem bom, caridoso, com um coração grandão assim que mal cabe no peito. Nordestino, ele superou o preconceito e venceu na vida. Liderou o Brasil depois de anos uma marcha fúnebre, literalmente. Foi o primeiro presidente civil a assumir o poder depois de décadas de ditadura militar. Não é todo mundo que agüenta isso não... Generoso, ele não hesita em dividir. Conseguiu um monte de coisas e quer mais é que os outros tenham o mesmo. E nada mais natural do que querer dividir isso tudo com as pessoas que ele mais ama, especialmente os familiares e amigos.

Corajoso. Todo mundo aí falando um monte de coisa sobre ele e o homem continua lá, firme e forte. Seguindo em frente de cabeça erguida. E a humildade? Nossa... Ele não tem medo de perder o lugar onde está não. Ele mesmo diz, se quiserem me tirar daqui, podem tirar.

Enfim, eu podia ficar aqui me rasgando de elogios, mas acho que já deu pra ter uma certa idéia do nível de quem estamos falando. Claro que todas essas personalidades que eu citei no começo têm suas muitas qualidades, mas para mim, não tem competição. Eles são todos pessoas bem legais, mas agora, gente boa, boa mesmo, só o Sarney.


Lois Lane

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Gente boníssima

O maior gente boa que eu conheço é o meu pai. Não é que o malandrinho se dá bem com todo mundo? Não sei explicar direito porque ele é gente boa, isso é coisa que só se vê no dia-a-dia: ele é político e ele é charmoso – não no sentido literal, não com aquela barriguinha de oito meses de gestação de gêmeos gordos –. Sinal disso é quando os SEUS amigos vão te visitar e não querem sair da cozinha porque lá “tá legal”.

Ele é irritantemente cativante. Aos 48 começou uma faculdade com a desculpa de passar o tempo. Com dois meses já estava ganhando festinha surpresa da garotada de ADM da Estácio. Mais conhecido como “velho”, “coroa” ou “tio”, recebeu um tragicômico carro de mensagens com direito a espuma, tapete vermelho, coroa e megafone. No primeiro período, porque no aniversário seguinte a galera já tinha aquela intimidade e a animadora do carro de mensagens não era mais a moça do braço quebrado, mas um autêntico travesti cantando “At first I was afraid, I was petrified” na porta da nossa casa e chamando minha mãe de baranga.

E ele é gente boa porque eu nunca levei uma palmada. Eu nunca nem tive que ouvir broncas gritadas a plenos pulmões, a gente sempre batia altos papos como se minhas conversas aos seis anos fossem tão relevantes quanto a paralisação de funcionários da empresa dele. Eu me sentia gente grande. E ele é gente boa porque quando eu estou surtando com minha velhice – vinte anos não é pra qualquer um não – ele me fala dos planos pós-aposentadoria. É mesmo um bon-vivant. Me diz que a gente tem a idade que sentimos ter.

É gente boa porque quando vamos fazer compras pegamos um carrinho só nosso, separado do da minha mãe. No dela se concentram toda a sorte de coisas saudáveis e cascudas. No nosso só o trivial: chocolate, sorvete, congelados, cerveja e amendoim pros jogos do Premiére Futebol Clube e Pringles, afinal, se mente sã é corpo são, o inverso também se aplica. E mesmo com toda essa garotice ele é a pessoa com mais senso de justiça que eu conheço, ainda me admira ver como ele sempre sabe o certo a dizer e fazer. Mais ou menos no estilo daquele faxineiro do Planalto que achou a mala recheada e devolveu.

E ele é gente boa porque sempre que eu vou de alguma night tem um lanche me esperando dentro do forno. As vezes ele acorda, me vê naquele estado deplorável e diz “você é fraquinha, quando eu tinha sua idade já passei três dias virado” e eu respondo “mas o aprendiz nunca supera o mestre”. E nem quero.
Srta. Bones I