terça-feira, 6 de outubro de 2009

O alpiste

O garoto astuto e perspicaz vestia terno, gravata, bermuda e ceroulas, embora estivesse quente – insuportavelmente quente. Quente e abafado, quente e moroso, asfixiante e desértico e todos os adjetivos pertinentes e impertinentes como esse calor, esse calor quente. Ele era levemente vesgo, torto, caído para os lados, às vezes hesitando à esquerda das calçadas, às vezes à direita dos transeuntes. Ele parecia pensar o mundo e todas as coisas e todas as coisas pertencentes ao mundo e tudo, absolutamente tudo – tudo – ao mesmo tempo. Parecia genial e imbecil, às vezes sobretudo imbecil, às vezes sobretudo genial. Pouco sobretudo genial.

Imbecil, de fato. Não era destacável, não era bonito, exageradamente estranho, gordo ou magro. Era mesmo inútil e descartável, gostava de Thomas Mann, Alison Krauss e Visconti; começara a estudar termodinâmica aos 8, envolvido com experimentos hercúleos inflamados pela obscuridade da garagem. Ele moldava tapetes e criava acácias, plantava sobriedades e colhia mexilhões; e sim, isso era perfeitamente possível. Gostava de ceroulas e trapaceiros, gostava dos dados, das prostitutas e das alegorias carnavalescas – e gostava de Michael Caine pouco pelas atuações magistrais e muito pelo trocadilho narcótico e infame.

E andava alegre e distraído pelas ruas de Amsterdã levando os mexilhões para passear; e sim, isso era perfeitamente possível. Ele colocava apelidos nos animais e mantinha segredo sobre os apelidos colocados. E preferia chorar lágrimas contrárias à gravidade, tentando tornar possíveis, também, esses desvarios.

Malaquias veio ao jovem e disse, profético e apocalíptico:

- O parnasiano comprou flores, visitou os vasos e terminou tocando o derradeiro tango argentino.

E o menino respondeu, truculento:

- Mas e se as mágoas taciturnas de Vinícius estivessem aqui, seríamos tão infelizes?

Ele contava, então, com apenas 6 anos de amargura e alcoolismo. E discursou:

- Sente-se e espere meu monólogo sobre a dialética.

Malaquias sentou.

Eles estavam próximos à avenida Dimensional IV. O enxofre estava próximo, e os mexilhões sentiam o vento indicando o aroma atípico e casual. O garoto arriscou levantar as pálpebras; e olhou a placa metálica e ilegível, anunciando: “Todos os artefatos inexistentes do universo e a biblioteca de Babel”.

E o monólogo começou:

Mamãe eu quero o prisma eu quero aquele prisma pra mim eu quero eu quero e mamãe por que você não me dá o prisma ele é bonito ele é azul ele é verde e é todas as cores olha só mamãe por que você não olha pra mim por que você está com essa roupa e por que você nunca me dá nada e por que o prisma é verde mamãe mamãe eu quero quero quero e eu quero e você vai me dar porque você é a minha mãe e você é tudo e você é todas e você é a absoluta imprecisão das verdades reverberantes e magnéticas do desfalecimento da memória. Mamãe, mamãe eu te amo e você me ama mas me dá o prisma me dá o prisma ele é bonito ele é lindo ele é lindo e eu vou ter cuidado e vou estudar fazer os deveres e chorar e nunca chorar e eu não sei mamãe, mas você me ama, mas você me ignora e você nunca olha pra mim e eu quero morrer porque você não me deu o prisma e pronto, morri.

Ele buscou a mochila, comprou o pacote, vendeu as imagens e terminou, enfim, acalentado pela melodia do Chico.

E amanheceu pacífico; e tudo era perfeitamente normal e aceitável.

Ou não.


Pato Donald

O idiota

O idiota é aquele sujeito que passa com o carro na poça só de sacanagem. Um minuto depois, você está completamente molhado e ele, rindo. Pode ser também o que fala algo incompreensível, só para você pedir para repetir e ele fazer uma gracinha depois. Um legítimo boçal não mede esforços para te tirar do sério. E é chato. Ri sozinho das suas piadas, conta várias vezes a mesma história e insiste em tocar em você durante o papo. E aquele que se acha um comediante stand up e te critica para uma platéia em alto e bom som? Não tarda a falar das suas gordurinhas a mais, da roupa que você veste e o que fala. Esse tipo seria capaz até de fazer uma crônica que criticasse pessoas. Como essa. A diferença é que eu não sou idiota e nem chato. E ai de quem disser o contrário!

Existe também o babaca ilustrado. Esse prefere problematizar sistematicamente uma situação cujo enfoque contextual ensejaria obviamente uma ótica mais adequada ao entendimento global. Ou seja: complicar o que é fácil. Outra versão é o Einstein. Para ele, tudo é relativo. Está sempre em cima do muro. Vale lembrar que tudo que está sendo dito aqui serve para as mulheres. Vamos usá-las para introduzir o marco da pós – modernidade: a geração de plástico. Essa espécie rejeita a condição humana e persegue vorazmente o modelo boneca fashion. Em alguns casos, você aperta a barriga delas e ouve frases prontas. Tem umas que chegam a falar cinco frases! Super legal.

Idiotas não entram em extinção. Eles se multiplicam. Acho até que as pessoas devem gostar deles. Por que não somem? Para onde quer que você vá, não importa quando, esteja certo de cruzar com um. Talvez haja um pouco deles no DNA de todos nós. Tem sempre um idiota no espelho mais perto de você.


Papel
- Tá bom, mãe. Pô, já falei que eu vou voltar de carona.

- Mas se cuida, então.

- Até parece que não me conhece, mulher! Beijos.

Pedro se considerava um adolescente normal que errava dentro da medida do esperado para os adolescentes comuns dos “tempos de experimentação”. Tinha tido algumas namoradas, traiu a primeira com a segunda e essa com a posterior, mas nada de caso pensado, e não que achasse isso certo. Simplesmente ele não parava para pensar muito a respeito e, afinal, ele não tinha prometido amor eterno. Achava sempre que com a atual é que era, essa sim, um relacionamento maduro.

Era do grêmio da escola e implicava com o pessoal do clube de xadrez, mas não chegava a sentir especial prazer nas perseguições organizadas pelos por alguns amigos. Também não se manifestava contra. Recebia uma mesada que dividia em duas parcelas: uma para comprar um carro e a outra para saídas. Saídas que envolviam beber, mas dezessete anos é quase dezoito e ele se considerava extremamente equilibrado e consciente.

Nunca chegou a pegar o carro da mãe e sair alcoolizado, mas aceitava uma carona ou outra quando considerava que o estado do motorista não representava perigo. Já era uma grana que economizava no táxi. Matava algumas aulas como todo mundo da sua idade, mas nunca chegou a perder o ano. E o curso de inglês era tão chato! Ele queria mesmo era fazer um intercâmbio, mas não sobrava dinheiro pra isso.

Jogava altinho na praia nos fins de semana e lá se envolvia com todo tipo de gente. No posto 9 de bermuda e sem camisa você não sabe quem é quem. Um dia foi chamado pra uma festa num sítio e lá rolou maconha. Ele aceitou, só pra ver como era. Nunca pensou em virar dependente ou coisa assim, ele não era cabeça fraca pra isso. A mãe queria saber de quem era o churrasco, ele disse que era de um amigo e não contou qual. Não era de nenhum amigo, mas era amigo de amigo, e ele tinha carona pra voltar.

Pra quem nunca tinha fumado nem cigarro convencional, até que ele foi bem. O problema é que os vizinhos, já cansados daquele tipo de festa com seu cheiro e o som nas alturas, ligaram pra polícia. Tinha tanta bebida, e ele, menor de idade, correu com todo mundo pra entrar nos carros, pular o muro ou o que fosse pra não ter que acordar a mãe no meio da noite e depois ouvir lição de moral em casa. Colocou uma garrafa de vodka embaixo da camisa, ele sempre quis uma garrafa daquela vodka polonesa, e se ela ali ia ficar pros policias.

- O que é que você tem aí escondido?

- Nada, pô.

- Então joga no chão e bota a mão na cabeça.

- A mão na cabeça? Há há, ta maluco. Não sou pivete não, porra.

- Joga essa merda no chão e bota a mão na cabeça.

“Ah, fala sério! Que PM babaca.” A reação foi rápida, ele ia tirar a garrafa e mostrar logo o que era, mesmo se ele tivesse que ser levado, depois ele se entendia com a mãe. Não era possível que ela achasse que ele nunca tinha bebido ou fumado um baseado. “Merda!”, o policial atirou. Atirou de novo. Foram dois estalos secos. Um nas costas e o outro na direção do ombro esquerdo.

O celular tocou. A mãe sempre achava que nessas festas de adolescente nunca tem comida e ela queria dizer que não tinha nada demais na geladeira, mas tinha dinheiro pra pedir alguma coisa, se ele chegasse com fome. Não seria necessário.


Srta. Bones I

A.R. - 15

14 de maio de 1991: Maria Silva vem do Nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro.

Até aqui, nenhuma novidade. Maria é apenas mais uma mulher que veio para a grande cidade em busca de ilusão. Sem nenhum estudo, planejamento, dinheiro e expectativa acabou por morar em uma espécie de cortiço no alto da favela da Rocinha.

Humilde mulher, com apenas 19 anos começou a trabalhar em uma linda mansão em São Conrado em troca de um pouco de dinheiro e um pouco de estudo.

Casou-se com Anderson Ribeiro,um rapaz igualmente jovem da própria comunidade, e passou-se a chamar Maria Silva Ribeiro. Juntos construíram um pequeno lar com apenas um quarto e uma cozinha/banheiro.

Engravidou 5 vezes, mas apenas o último filho vingou. (os dois primeiros morreram na gestação e os outros 2 não passaram dos 4 meses de vida).

Porém, quando seu quinto e único filho passou do primeiro ano, quem morreu foi seu marido. Causa da morte: bala perdida.

A mulher de nome santo estava sendo apunhalada pelo fantasma da morte mais uma vez.

Ela já havia passado pela dor da fome, a dor de não ter um lar, a dor da decepção de ter abandonado a sua terra natal em busca de uma ilusão. Ela sentia saudades das suas irmãs, sentia saudades de seus pais, já tinha sido espancada sem motivo, mas ela tinha certeza que nada se comparava a dor de perder alguém que se ama. (e pela quinta vez ela sentia essa dor).

Por mais que ainda tivesse um filho, Maria sentia-se sozinha, Maria não queria mais viver... De luto, toda favela se apagou e chorou com Maria...

Rio de Janeiro, ano de 2009. A Rocinha cresceu, ganhou uma nova dinâmica e muitas novas “marias” que vieram tentar a sorte no Rio de Janeiro.

O tráfico de drogas cresceu assim como o número de tiroteios, o preconceito e medo dos moradores da Zona Sul e Oeste em relação à Rocinha. Mais do que nunca morador de favela virou sinônimo de bandido. (grande tolice da humanidade...).

Realmente não é nada fácil você ser o elo fraco da desigualdade social, não ter o que comer e o que vestir no frio e ainda conseguir dizer NÃO para as ofertas ilícitas, porém fáceis de conseguir dinheiro. Mas felizmente existem pessoas que conseguem dizer “não”.

Na própria Rocinha, das muitas “marias”, um jovem se destacava por essa força de vontade.

Era alto, moreno escuro de cabelos lisos e negros. Seu corpo raquítico suportava uma vontade de crescer na vida sem igual.

Vendia doces em sinais de trânsito e cerveja nos finais de semana de sol nas praias da Zona Sul. Com o dinheiro que arrecadava ajuda sua mãe, comprava cadernos, livros e juntava o pouquinho que sobrava para um dia comprar tênis especiais para prática de corridas. Era um dos poucos jovens de sua região que lia com perfeição e que era ótimo em matemática.

Por sinal,seu talento em matemática chamava a atenção dos chefões do tráfico que insistiam em chamá-lo para trabalhar junto com eles como uma espécie de tesoureiro. Mas ele de forma inacreditável negava o convite sem despertar a ira deles.

Ele sempre falava que queria ser exceção. Se no morro todo mundo era bandido, ele não ia ser. Se todo mundo não sabia ler, ele ia saber com excelência. Se todos usassem drogas ele seguir a vida em pró da saúde e do esporte.E seguindo esta lógica ele superava-se a cada dia o que só alimentava o seu sonho de ser médico e/ou maratonista.

No dia 2 de outubro, seu lado atleta falou mais alto que seu lado médico e ele não trabalhou, não estudou. Tirou o dia para ficar concentrado na praia de Copacabana aguardando a escolha da cidade sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Sonhava com a escolha do Rio, pois acreditava que poderia ter a chance de competir na Cidade Maravilhosa.

Acho que nenhum dia foi tão longo para ele quanto o 2 de outubro de 2009. E quanto mais próximo ficava da anunciação, mais ele sofria.

Eis que na TV, um gringo de cabelos brancos deu a esperava notícia: O Rio iria sediar as Olimpíadas de 2016.

Neste momento seu lado maratonista praticamente anulou seu lado médico. Ele gritava,chorava e sambava ao som da bateria do Salgueiro. Teve vontade de ir correndo de Copacabana até a Rocinha para já ir treinando, no entanto, chegando no Leblon seus pés descalços não aguentaram e ele pegou um ônibus.

Ao chegar à favela, iluminou o morro com seu sorriso. Sua mãe tinha medo dele se iludir, afinal sabia que dificilmente seu filho ia ter a oportunidade de ser descoberto pelo esporte, mas naquele dia, ela não falou nada e deixou seu menino sorrir.

Uma semana depois, uma operação policial a fim de começar a eliminar a criminalidade na cidade eleita como sede das Olimpíadas de 2016, invadiu a Rocinha de madrugada. O morro que estava até com uma atmosfera melhor, uma vez que fora convencido por um menino raquítico que aquele lugar ia melhorar por causa das Olimpíadas, voltava a viver o terror da realidade.

A noite escura foi iluminada não mais por um sorriso, mas por tiros de fuzis.

Na manhã seguinte, os moradores viram pela janela o resultado na noite de terror. Inúmeros corpos estavam espalhados pelos corredores estreitos da favela. A fúnebre cena e o medo de ainda não ter acabado impedia que muitos saíssem de seus barracos.

O único som que abalava o silêncio daquele lugar era o choro de uma mulher, um choro que a Rocinha não escutava há 14 anos. Era o choro de Maria Ribeiro que em total desalento abraçava o corpo de um rapaz alto, raquítico, de pele morena escura e cabelos lisos e negros. O rapaz atirado no chão era André Ribeiro – 15 anos. O quinto, único e último filho de Maria Ribeiro – 27 anos que perdeu a sua vida por conseqüência das primeiras medidas para melhorar o Rio de Janeiro – a sede dos Jogos Olímpicos que André tanto sonhava em participar.


Vento

Casa

Não sou do tempo em que se nascia em casa, tempo de parteira e tempo de espera. Já nasci nos 80, época mais recente, em que as mães saíam de casa rumo ao hospital para voltar com mais um integrante da família. O dia marcado para o nascimento, aliás, é um daqueles momentos inesquecíveis, que marcam a vida da gente. Bolsas de roupa, fraldas, mãe, pai, apreensão. Momento final: o bebê. Ou momento primeiro, olhando com os olhos de quem vê ali uma vida nova, ponto de partida.

Mas não é sobre bebês ou tampouco parteiras que vou falar no texto que segue. Queira o leitor compreender que, estando fora de casa, bate agora uma falta daquela coisa boa do lar. Quarto, sala, cozinha. A casa da gente guarda uma vida própria. Cheiro de casa, gosto de casa. Eu sinto que, dentro dos limites impostos pelas paredes desse lugar único e particular, eu sou eu, você é você e ela pode até ser ele, se assim quiser. Dentro de casa todo mundo é invisível – para o mundo – e transparente para si próprio.

O dia de trabalho acaba, fecho a porta. Quero deixar pra fora o espanto da liberdade, o cansaço das coisas vividas. Acontece que – fato imutável – tudo isso tem vida própria e, pelo buraco da fechadura ou na sola do sapato, tudo entra comigo. Inevitável. Eles entram em fila. As conversas pendentes, textos pra ler, a bronca do chefe, o salto do sapato novo quebrado... Tudo se mistura e, no final do dia, vai pra casa comigo.

O que foi bom, o que formou no rosto um sorriso grande naquele dia, eu guardo na caixa de madeira do lado da cama. Do lado da cama. Deve estar perto para que eu possa sempre lançar mão quando o mais difícil na noite é ter bons sonhos. Abro a caixa, escolho um. O telefonema da amiga da escola, o olhar querendo dizer muito, a sobremesa tão esperada durante toda a semana... Não, não! Hoje vou escolher o oi da saída do elevador. Coloco debaixo do travesseiro e durmo melhor. Para quem pensava que passava invisível aos olhos dele, ganhar um oi despretensioso teria mesmo que valer um sonho.

Um sonho ou até dois, um conjunto deles. Durante toda aquela semana não precisei da caixa de madeira. Ela só se enchia cada vez mais das coisas boas.

Essa é a magia da casa, pra mim. Saber que precisando ou não do afago certo que ela dá, ela vai estar ali. Imóvel, literalmente. É como a minha caixa que, como um consolo, eu vejo todo dia e sei que se os fantasmas chegarem – esses que se escondem debaixo da cama, na porta do armário e na sombra da parede – ela vai estar ali, e meu medo vai passar. Ela cala, ela fala. A casa.

Como se mata uma lembrança

Uma frase de Adriana Lunardi me pegou pelos pés. “A existência, como se sabe, é uma noção dada pelo tempo”. Se tudo que já aconteceu só deixa certeza de sua existência pela lembrança deixada, o tempo faz questão de apagar. É preciso isolar até matar de solidão o que nos liga ao passado indesejado. Conto lhes como exemplo a história de um amigo de um amigo meu. Mesmo sabendo todos os detalhes do acontecido juro de pé junto que não fui eu:

Adriano sempre se surpreendeu com sua falta de bom senso. Não bastava já morar na mesma rua que Ana, tinha que se oferecer para cuidar do cachorro enquanto ela viajava? “Não se preocupe Adriano, Thor já te conheci, não vai dar trabalho algum” ela falou ao telefone enquanto ele anotava tudo que era preciso fazer. Regar as plantas, recolher a correspondência e deixar na estante sobre a pia. “Para que eu estou falando isso se você já sabe tudo?”. Adriano sabia mesmo? Sabia nada! A mais de um ano Ana era só uma lembrança desbotada. Hoje nem mais a cor de seus olhos ele conseguia se lembrar com certeza. E mesmo que continuasse sem a ver, a ideia de cuidar de Thor por amizade soava cada vez mais ridícula.

No dia seguinte, por pouco os joelhos não falharam e provocaram a sua queda no meio da sala. Estranhamente ainda a mesma sala, intacta de antigos verões, até o controle remoto continuava no lugar de sempre, escondido no vão da almofada esquerda do sofá. Só as paredes que não mais tinha as fotos do antigo casal. Para Adriano isso fora um choque. Ele percorreu a casa com Thor em seus calcanhares balançando o rabo de alegria. Ascendeu um cigarro para disfarçar o perfume de Ana impregnado no ambiente. Foi até o aparelho de som e tirou o cd do Chico Buarque, que de tanto tempo que estava ali não se sabia o paradeiro de sua caixa. “Coloca Chico pra gente Dri?” falou Ana através da voz azeda de Adriano. “Chico agora vai dormir! Chegou a vez do Jorge Ben”. E ele colocou um antigo cd seu perdido em meio aos muitos dela. Sem seu cheiro e sem seu barulho aquela casa já não lhe causava tantos calafrios. Havia usado a mesma tática para apagá-la do resto da sua vida.

Só depois disso ele deu o primeiro afago em Thor, que então deitou num canto e liberou a casa para ele. Adriano foi sozinho até o quarto, evitando fazer qualquer barulho (para ninguém). Ainda azul, ainda com os mesmos objetos e com a mesma mancha de cigarro no tapete, culpa dele. Mesmo se as paredes falassem não diriam nada, só o encarariam com um silêncio constrangedor. Adriano abriu o armário e se deparou com a primeira mudança. O conteúdo já não era mais tão igual assim. Pegou nas mãos um vestido que nunca vira antes (e mesmo assim, a cara de Ana) e seguindo uma vontade sem explicação, o vestiu. Alisava a próprio corpo em frente ao espelho. Os peitos deixavam a desejar, mas o quadril trabalharia muito bem nas ruas de Copacabana. Jurou pela coca-cola que tomava que não havia nada demais no que estava fazendo. Adicionou um chapéu e um charpe à Adri-Ana. Mas na procura de algo melhor encontrou sua antiga jaqueta. No susto, deixou o cigarro cair e queimar novamente o tapete, mas não era pra menos, andava procurando aquela jaqueta a mais de um ano. Era sua favorita. E de Ana também. Não fazia ideia de que ela estava ali, de que parte dele ainda estava dentro daquele armário.

A brincadeira perdera toda a graça, Adriano resolveu desligar a música e ir dormir.

Sonhou com sua jaqueta e com Ana dentro dela. Ela vinha em sua direção com seu olhar dengoso, que há muito não via. Pronta para dizer algo. Ele interrompe. “Essa jaqueta é minha!” Ela fecha a cara. “Você veio aqui por causa de mim ou da jaqueta?!”. Ela tira a jaqueta e joga nele. “A jaqueta ainda é minha, você não...”

Adriano acorda ao som da campainha berrando. Assustado corre até a porta. Atende sem pensar. É apenas o carteiro vestido de amarelo e ele recebe as cartas de vestido longo de flores do campo. Deixa as cartas na estante em cima da pia e nota que ainda não fizera nada que lhe foi pedido. Thor lambia um pote vazio em desespero e as plantas murchavam. Adriano correu contra o tempo e contra a irresponsabilidade que iria cair em seus ombros. Ana daria um chilique com certeza.

Foi devolver o vestido apresado, mas não que por muito acidente encontrou um caixa de sapatos no fundo do armário. Ele abriu, mesmo sabendo o que isso iria dar no fim. Estava tudo ali em fotos. O primeiro encontro a viagem pra Búzios o segundo aniversário de namoro o natal na casa da família dela o dia que Thor nasceu o primeiro aniversário de namoro Adriano dormindo Thor dançando Chico o último encontro Adriano lavando a louça de vestido Ana gritando numa montanha russa o último aniversário. Fotos que antes se penduravam na sala, no quarto e até tinha uma bem engraçada no banheiro. Adriano pegou sua favorita chorando sem fazer barulho e guardou o restante. Picou em milhares de pedacinhos e misturou na comida de Thor, na água para as plantas e nas cinzas do cinzeiro. Trancou a porta e foi trabalhar com sua jaqueta.


Jefferson Rocha

Gente boa

Jesus era gente boa. O Senna era gente boa. O Dom Pedro II, dizem, era gente boa. A madre Teresa de Calcutá era gente boa. Também o Zumbi, a Chiquinha Gonzaga, o Martin Luther King, o Gandhi, Saão Francisco de Assis, enfim... todos gente boa. Mas essa galera toda, infelizmente, já morreu. Fazer o quê? Paciência. Todo mundo tem que morrer um dia. Agora gente boa, boa mesmo, pra mim, é o Sarney.

Pára pra pensar. Homem bom, caridoso, com um coração grandão assim que mal cabe no peito. Nordestino, ele superou o preconceito e venceu na vida. Liderou o Brasil depois de anos uma marcha fúnebre, literalmente. Foi o primeiro presidente civil a assumir o poder depois de décadas de ditadura militar. Não é todo mundo que agüenta isso não... Generoso, ele não hesita em dividir. Conseguiu um monte de coisas e quer mais é que os outros tenham o mesmo. E nada mais natural do que querer dividir isso tudo com as pessoas que ele mais ama, especialmente os familiares e amigos.

Corajoso. Todo mundo aí falando um monte de coisa sobre ele e o homem continua lá, firme e forte. Seguindo em frente de cabeça erguida. E a humildade? Nossa... Ele não tem medo de perder o lugar onde está não. Ele mesmo diz, se quiserem me tirar daqui, podem tirar.

Enfim, eu podia ficar aqui me rasgando de elogios, mas acho que já deu pra ter uma certa idéia do nível de quem estamos falando. Claro que todas essas personalidades que eu citei no começo têm suas muitas qualidades, mas para mim, não tem competição. Eles são todos pessoas bem legais, mas agora, gente boa, boa mesmo, só o Sarney.


Lois Lane