terça-feira, 6 de outubro de 2009

Como se mata uma lembrança

Uma frase de Adriana Lunardi me pegou pelos pés. “A existência, como se sabe, é uma noção dada pelo tempo”. Se tudo que já aconteceu só deixa certeza de sua existência pela lembrança deixada, o tempo faz questão de apagar. É preciso isolar até matar de solidão o que nos liga ao passado indesejado. Conto lhes como exemplo a história de um amigo de um amigo meu. Mesmo sabendo todos os detalhes do acontecido juro de pé junto que não fui eu:

Adriano sempre se surpreendeu com sua falta de bom senso. Não bastava já morar na mesma rua que Ana, tinha que se oferecer para cuidar do cachorro enquanto ela viajava? “Não se preocupe Adriano, Thor já te conheci, não vai dar trabalho algum” ela falou ao telefone enquanto ele anotava tudo que era preciso fazer. Regar as plantas, recolher a correspondência e deixar na estante sobre a pia. “Para que eu estou falando isso se você já sabe tudo?”. Adriano sabia mesmo? Sabia nada! A mais de um ano Ana era só uma lembrança desbotada. Hoje nem mais a cor de seus olhos ele conseguia se lembrar com certeza. E mesmo que continuasse sem a ver, a ideia de cuidar de Thor por amizade soava cada vez mais ridícula.

No dia seguinte, por pouco os joelhos não falharam e provocaram a sua queda no meio da sala. Estranhamente ainda a mesma sala, intacta de antigos verões, até o controle remoto continuava no lugar de sempre, escondido no vão da almofada esquerda do sofá. Só as paredes que não mais tinha as fotos do antigo casal. Para Adriano isso fora um choque. Ele percorreu a casa com Thor em seus calcanhares balançando o rabo de alegria. Ascendeu um cigarro para disfarçar o perfume de Ana impregnado no ambiente. Foi até o aparelho de som e tirou o cd do Chico Buarque, que de tanto tempo que estava ali não se sabia o paradeiro de sua caixa. “Coloca Chico pra gente Dri?” falou Ana através da voz azeda de Adriano. “Chico agora vai dormir! Chegou a vez do Jorge Ben”. E ele colocou um antigo cd seu perdido em meio aos muitos dela. Sem seu cheiro e sem seu barulho aquela casa já não lhe causava tantos calafrios. Havia usado a mesma tática para apagá-la do resto da sua vida.

Só depois disso ele deu o primeiro afago em Thor, que então deitou num canto e liberou a casa para ele. Adriano foi sozinho até o quarto, evitando fazer qualquer barulho (para ninguém). Ainda azul, ainda com os mesmos objetos e com a mesma mancha de cigarro no tapete, culpa dele. Mesmo se as paredes falassem não diriam nada, só o encarariam com um silêncio constrangedor. Adriano abriu o armário e se deparou com a primeira mudança. O conteúdo já não era mais tão igual assim. Pegou nas mãos um vestido que nunca vira antes (e mesmo assim, a cara de Ana) e seguindo uma vontade sem explicação, o vestiu. Alisava a próprio corpo em frente ao espelho. Os peitos deixavam a desejar, mas o quadril trabalharia muito bem nas ruas de Copacabana. Jurou pela coca-cola que tomava que não havia nada demais no que estava fazendo. Adicionou um chapéu e um charpe à Adri-Ana. Mas na procura de algo melhor encontrou sua antiga jaqueta. No susto, deixou o cigarro cair e queimar novamente o tapete, mas não era pra menos, andava procurando aquela jaqueta a mais de um ano. Era sua favorita. E de Ana também. Não fazia ideia de que ela estava ali, de que parte dele ainda estava dentro daquele armário.

A brincadeira perdera toda a graça, Adriano resolveu desligar a música e ir dormir.

Sonhou com sua jaqueta e com Ana dentro dela. Ela vinha em sua direção com seu olhar dengoso, que há muito não via. Pronta para dizer algo. Ele interrompe. “Essa jaqueta é minha!” Ela fecha a cara. “Você veio aqui por causa de mim ou da jaqueta?!”. Ela tira a jaqueta e joga nele. “A jaqueta ainda é minha, você não...”

Adriano acorda ao som da campainha berrando. Assustado corre até a porta. Atende sem pensar. É apenas o carteiro vestido de amarelo e ele recebe as cartas de vestido longo de flores do campo. Deixa as cartas na estante em cima da pia e nota que ainda não fizera nada que lhe foi pedido. Thor lambia um pote vazio em desespero e as plantas murchavam. Adriano correu contra o tempo e contra a irresponsabilidade que iria cair em seus ombros. Ana daria um chilique com certeza.

Foi devolver o vestido apresado, mas não que por muito acidente encontrou um caixa de sapatos no fundo do armário. Ele abriu, mesmo sabendo o que isso iria dar no fim. Estava tudo ali em fotos. O primeiro encontro a viagem pra Búzios o segundo aniversário de namoro o natal na casa da família dela o dia que Thor nasceu o primeiro aniversário de namoro Adriano dormindo Thor dançando Chico o último encontro Adriano lavando a louça de vestido Ana gritando numa montanha russa o último aniversário. Fotos que antes se penduravam na sala, no quarto e até tinha uma bem engraçada no banheiro. Adriano pegou sua favorita chorando sem fazer barulho e guardou o restante. Picou em milhares de pedacinhos e misturou na comida de Thor, na água para as plantas e nas cinzas do cinzeiro. Trancou a porta e foi trabalhar com sua jaqueta.


Jefferson Rocha

Nenhum comentário:

Postar um comentário