terça-feira, 17 de novembro de 2009

O mundo e o seu umbigo

Atire a primeira pedra aquele que nunca teve que agüentar essa frase seguida de um malicioso tapinha na cabeça. Mãe, pai, amigo, prima, namorada, tanto faz o algoz, basta que alguém invoque o aclamado clichê para que uma discussão corra o risco de ser encerrada. Admito que nunca tive a intrépida cara-de-pau de responder à pergunta tão recheada de retórica. Mas num domingo calorento desses, jogado ao sofá após mais um espetáculo rubro-negro regado a cerveja, tive um relance de inspiração enquanto assistia a “minha revista eletrônica” dominical. E se o mundo realmente girasse ao redor do meu umbigo?

Nesse iluminado domingo uma pergunta me fez perceber um fenômeno para o qual nunca havia aberto os olhos. Uma pobre equipe de reportagem saía às ruas com a missão de saber “o que você fazia quando...?”. Mais uma vez, diante da falta de conclusão sobre determinado tema e a necessidade de repercutir (falar por falar), o shownalismo travestido de filme policial tornava “o meu, o seu, o nosso” cotidiano em notícia. Terminada a reportagem, me diverti por horas imaginando como seria se, de fato, os fatos fossem narrados de um outro ponto de vista.

Na última terça-feira, por exemplo, Maria saiu do trabalho e pegou dois ônibus para ir pra casa. Subiu alguns lances de escada, teve dificuldades para abrir a porta pois a fechadura estava emperrada, mas com jeitinho conseguiu entrar devagar. Deixou as compras na mesa e foi tomar uma ducha fria, afinal já estava com o corpo mole de tanto calor. Pensou no dia, nos filhos, no marido que já não tem mais e faz falta, e no terceiro bico que arrumaria na semana para garantir o tradicional tender com cidra no natal. Saiu do banho, se enxugou, jogou um vestido poído sobre o corpo e voltou para a cozinha. Como o dia ainda estava claro graças ao horário de verão, não acendeu a luz. Abriu o gás, riscou um fósforo, pôs a água pra ferver e sentiu falta da tímida luz quando abriu a porta da geladeira. Abriu e fechou duas ou três vezes e só então viu que as pedras dentro da forma de gelo começavam a se desfazer. Maria estava mais uma vez sem luz. Assim como outros 18 estados do país.

Em 2001, Paulo Raimundo saiu com os amigos para comemorar o aniversário de 45 anos. Os amigos recolheram as economias de setembro e resolveram bancar o aniversário do compadre. Da roça direto para o centro. Decididos por uma comemoração banhada a cana e mulher, foram direto ao “Marrakesh”, o paraíso das belezas “marroquinas” no coração de Maranguape, interior do Ceará. Paulo se rendeu aos encantos de Jade (sim, em homenagem à novela) e teve sua noite de sultão no Taj Mahal (afinal, norte da África e sul da Ásia são muito próximos) por modestos R$70. Acordou no dia seguinte com um zoológico inteiro berrando dentro da cabeça, vestiu a roupa e saiu ainda cambaleante da suíte-palácio. Sem condições físicas para levantar um facão sequer, o virginiano faltou o trabalho e foi direto para casa. Com 45 anos completos, abriu a porta, se lançou no sofá, ligou a TV e dormiu. Antes de dormir, ainda lembra ter visto, na TV, imagens de dois aviões se chocando contra uns prédios em algum lugar dos EUA.

Poderia passar o dia aqui com outras histórias como o porre homérico do tio Vladimir quando um muro caiu na Alemanha, ou o desespero de Olívia, vizinha de uma grande amiga, para limpar a casa depois no dia seguinte à festa de natal de 2004. No mesmo dia em que no Oceano Índico um terremoto provocou uma grande onda também.

Marias, Paulos Raimundos, tios Vladimir e Olívias estão por aí todos os dias, em todo lugar, a qualquer hora, com suas histórias e fatos. Todo mundo sabe, mas ninguém os conhece. Logo, se ninguém os vê, ninguém é o que são. Só passam a Ser quando um fato faz com que girem em torno de outros umbigos.

Zé Caruso

Vencer, vencer, vencer

Era um grupo de seis rapazes. Conversavam entusiasmados ao saírem do passatempo do final de semana: o futebol, única atividade daqueles que estudavam e trabalhavam o dia inteiro e que só queriam se divertir correndo atrás da bola em pleno sol do meio dia. Em meio aos gritos, o mesmo tema ainda os unia: o futebol. Qualquer um diria “ah, é a paixão brasileira”. Eu diria que isso tudo beira o fanatismo.

Perto do campinho onde jogavam, havia um bar. Ah, não me faça lembrar o nome. Era um boteco onde eles costumavam parar e ver os jogos da rodada do Brasileirão no final de semana. A cerveja gelada fazia a tulipa suar, assim como os rostos dos rapazes. Na televisão, adivinha sobre o que o comentarista falava? Sim, o futebol. Mas não era qualquer futebol. Era o Flamengo – time que comandava o termômetro de exaltação dos seis torcedores da mesa, atentos a cada lance, cada novidade.

A novidade dessa vez não era muito boa. Além de eles não poderem ir ao próximo jogo, contra o Barueri e fora de casa – ah, sim, esqueci de mencionar que eles iam em todos os jogos no Maracanã – o ídolo das últimas vitórias também iria desfalcar a equipe. Suspenso, o atacante Pet vai ver tudo do banco, assim como os torcedores. E ele, logo ele, o sérvio quase quarentão que retornou ao clube por causa de uma dívida antiga, tornou-se um dos grandes ídolos da torcida.

Apesar disso, nada abalava a confiança dos rapazes. “Se o Flamengo ganhar essa, entraremos no G4” - um deles gritava. Pois é, a décima vitória consecutiva do rubro negro já rende lucro para os jogadores, que ganharam R$ 60 mil cada em bônus. E os torcedores, é claro, ganham cada vez mais esperança de que o time poderá ser o campeão do Brasileiro 2009. Aliás, a esperança que já está com eles desde o início, desde o “uhhh” na ameaça de um gol, desde a pelada do fim de semana em que se imaginam fazendo os dribles dos craques, desde a voz que entoa o hino do clube... até a conversa no bar com os amigos.

Jornalista

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Já virou rotina

Primeiro eu pensei que era uma rotina apenas do Rio de Janeiro, mas depois, lendo o jornal de hoje, percebi que não se restringia a minha cidade. Já virou rotina no Brasil e no mundo. Eu prefiro falar de música, cinema, cultura... Mas do jeito que a coisa anda eu não podia deixar de me manifestar.

A violência no país está atingindo níveis absurdos e as drogas só fazem aumentar esses números. Encontramos cada vez mais drogados nas ruas, na televisão, na internet, nas rádios. Filho mata pai, irmão mata irmã, namorado mata a garota dos sonhos, tráfico invade favela, toneladas de maconha e cocaína são apreendidas... Essas são as notícias que o brasileiro - e outras pessoas ao redor do mundo - encontram todos os dias nos jornais.

Li uma matéria no Globo sobre uma operação da polícia de Curitiba - que para mim, até então, era um lugar tranquilo - onde foram apreendidas toneladas de drogas: maconha, cocaína, crack. Não sei o que sentir numa ocasião dessas: fico feliz porque a polícia brasileira foi eficiente e conseguiu fazer o seu trabalho de repressão ou fico triste porque meu país virou rota do tráfico internacional de drogas? Ainda não sei.

Tem até prefeito de cidade mineira se drogando! O candidato passou por um longo período de campanha, conquistou a confiança dos eleitores, derrotou adversários e, finalmente, conseguiu ser eleito para governar a cidade durante quatro anos porque tinha uma conduta que agradava aos eleitores. De repente, sem completar nem um ano de mandato, descobre-se que ele ia até as favelas locais para comprar drogas (crack especificamente). Ai você para e pensa: nenhum político presta. E lembra de todos os casos de José Sarney, Roberto Jefferson, Álvaro Lins... É, já virou rotina, a política brasileira também nos envergonha. E nós, eleitores, ainda somos obrigados a votar!

Mônica Sampaio

Do avesso

Acordei essa manhã e fui direto para o trabalho. Não tive tempo nem para tomar meu café da manhã porque já estava atrasado. Cheguei lá e fiquei imerso nos problemas da empresa até a hora do almoço. Quando fui até a pequena cozinha do escritório para esquentar meu almoço, entreouvi meus colegas conversando sobre mais uma tragédia que passava no noticiário.

- Caramba, atiraram nele. Parece que ele estava caminhando na rua.

Mais uma dona de casa saiu às ruas e matou uma pessoa, um traficante da favela na qual ela morava. Ela atirou contra as costas do rapaz e o tiro lhe atravessou o peito. Tentaram socorrê-lo, mas ele já estava morto quando chegou ao hospital. Foi como na semana passada, quando uma senhora esfaqueou um PM dentro de um bar. Normal isso acontecer hoje em dia. Os traficantes e policiais estão com medo. O governo não sabe o que dizer para acalmar essas pessoas. Estão oferecendo aumentos e folgas.

As novelas só tratam disso. Os jornais, então, nem se fala. É um sensacionalismo atrás do outro. Vários repórteres seguem pela rua procurando e tentando identificar o perfil desses assassinos inescrupulosos.

- Trabalhador, normalmente com família, grande parte de baixa renda, mas existem as exceções da classe média... – ouvi o repórter do telejornal descrever.

Todos na empresa eram potencialmente perigosos. Por isso todo mundo dava sempre um jeito de mostrar como mesquinhos somos, como errada cada parte da nossa vida era. Bárbara, do setor de finanças, ontem mesmo, gritou no meio do salão que anda roubando a empresa, sobretaxando preços como o do café e da copiadora e pegando a diferença para ela. Depois, eu ouvi outras funcionárias invejosas reclamando o quão pretensiosa Bárbara era.

Deve ter algo absurdamente de errado comigo. Eu penso que essa sociedade só pode estar realmente doente. Ninguém mais preza valores como o da família. Só defendem os interesses pelo dinheiro, pelo poder; ninguém mais é honesto, ninguém mais tem caráter. Em que momento a sociedade enlouqueceu? Quando foi exatamente que perdemos a esperança de viver segundo os princípios do respeito e da cidadania?

Nos meus quarenta anos de vida, nunca vi nada mudar. Me pergunto: será que poderei criar meu filho numa época como essa? E meus netos? Estamos no ano de 2109, meu Deus! Será que em algum século alguma coisa poderá mudar?

Ana Cristina, a dona de casa revoltada, foi presa em flagrante. Logo em seguida, foi solta, por falta de provas. Os traficantes da região choram a perda do amigo, e esta tarde realizam uma passeata contra a violência.

Wilma Dantec

Rambo em: a missão final

Seria muito fácil terminar aquele dia sem receber uma ordem direta do Conselho. Diria Conselho pra não dizer Estado, pra não dizer as mais altas patentes militares. Quando esse tipo de coisa acontece, sabemos que o partido rival deu algum furo e chamou atenção demais com suas ações. Em períodos como este, é importante ser discreto.

Estas missões nunca eram complicadas de se realizar. É incrível como quando nos encarregam de algo desse valor eles já têm tudo pronto. Logo ao entardecer daquele dia, o carro que seria utilizado estaria estacionado próximo a um restaurante, nas proximidades do batalhão vizinho. Lá já estariam dois agentes que me dariam cobertura. Logo que o alvo saísse de sua casa de carro, o iremos abordar com permissão de abrir fogo.

Não havia passado das cinco da tarde. Era o tempo para eu me preparar psicologicamente para a missão. A cada dia que passa este tipo de ordem era dada para militares de patente semelhante a minha e já começava a virar rotina. Somos cargos de confiança. Confiança essa que retribuímos com serviços à nossa bandeira. Que retribuímos com nosso silêncio.

Mas por que temos que lutar e matar pessoas que lutam pela mesma bandeira que nós? Algo que me inquieta sempre é o fato de que, se lutamos por um bem maior, se lutamos pelo nosso país, por que fazemos tudo às escondidas? Existem momentos em que parece que a população vive num grau de alienação e aceitação tal que, independente das atitudes do Conselho, não faz a menor diferença. Por mais que as pessoas tenham consciência de algumas coisas, o medo faz com que hesitem em lutar.

Estava vestido com o colete, armas no coldre, roupas comuns, um comum frio na barriga e faltava apenas quarenta minutos para a missão se iniciar. Já era hora de tomar postos e esperar o momento. A rua nunca era muito barulhenta e nesse dia apresentava uma quietude ainda mais sobrenatural. A missão estava algum tempo adiantada e os dois agentes já me esperavam num carro conversível preto de emplacamento civil, como sempre.

Só não posso dizer que aqueles foram os piores minutos da minha vida porque já tinha passado por aquela situação outras vezes e sentia a mesma coisa. Mas algo me dizia que daquela vez não era só isso. Mas o mais importante era manter a calma, respirar fundo, empunhar o rifle e atirar. Atirar em um compatriota. Era uma questão de poucos segundos e terminava o serviço. Mas mesmo assim, a cada dia que passava recebíamos uma nova ordem para executar alguém da oposição e a cada dia ressurge a esperança de que esta será a última vez.

A porta da garagem foi aberta lentamente enquanto um carro vermelho se preparava para sair. Era chegada a hora. O nosso carro estava posicionado próximo à porta da garagem e o cano do rifle já estava preparado e carregado. Era só esperar o carro terminar de sair da garagem e disparar na lataria do alvo mesmo, já que a bala do rifle seria capaz de perfurar o metal. Tínhamos uma boa distância, e com o silenciador, não iríamos levantar suspeitas. Apenas mais um segundo e...

Por um momento acreditei que tudo tinha dado certo, a missão havia terminado e eu só precisava contar com o pé no acelerador do meu comparsa. O vidro ao lado da cabeça do alvo estava banhado de sangue, que deveria ter jorrado de seu pescoço ao ser atingido. O buraco aberto no outro carro estava estrategicamente posicionado onde a bala deveria ter se alojado no alvo, logo acima da clavícula. Assim que nosso veículo arrancou, percebi que o motorista do defunto olhava horrorizado pra trás, quando levantou um pequeno braço pelas mãos. Lá estava um menino, uma criança, que mal deveria ter seus cinco anos, inerte. Enquanto o motorista gritava e saía do carro com o garoto no colo e curiosos se aproximavam, conseguimos fugir. Olhei para o rifle em minha mão. Girei-o segurando pelo cano e aproximei o indicador da outra mão ao gatilho. O metal não estava muito frio. Senti gosto de ferro. Teria sido muito fácil terminar aquele dia sem receber aquela ordem direta do Conselho.

Rambo
26 de outubro de 2009. O Paraná é varrido mais uma vez em menos de um mês. Não, não falo do tornado que atingiu a região e provocou estragos em várias cidades paranaenses em meados de outubro. Refiro – me à ação conjunta da polícia que resultou na prisão de 279 suspeito de tráfico. Situação bem diferente da que assolava a região há pouco tempo, quando bandidos mataram oito pessoas em Curitiba como forma de afirmar o poder do tráfico no local. O desrespeito ao toque de recolher instituído por bandidos foi fatal para quem ousou estar na rua após a hora determinada. Quem matou, disse que não escolheu as vítimas. Nem mulheres e bebês foram poupados da chacina. Afinal, quem manda andar na rua a hora que bem entender?

A prisão em massa obviamente não acaba com o problema da violência e do narcotráfico no Paraná, mas refresca a alma de quem se vê acuado pelo crime. A polícia fez sua parte em mostrar que não abre mão de sua autoridade facilmente. Resta saber se os suspeitos são mesmo culpados e , se for, se vão ser presos. Vale a pena lembrar também que as cadeias do estado sofrem os mesmo males da instituições nacionais. Foi de um presídio de Chapecó que partiu a ordem para a invasão no morro dos Macacos, no Rio de Janeiro.

Outro fato nessa história chama a atenção. Enquanto o Rio de Janeiro ainda se orgulha do polêmico filme Tropa de Elite e prepara a sequência, a operação realizada no sul do Brasil se completou sem que uma pessoa fosse morta ou sequer ferida. Enquanto isso, no Rio... guerra entre bandido e bandido, bandido e polícia, morre um , morre dois, dezenove. E ainda tem gente morrendo. Estamos falando do mesmo país? As balas perdidas não cansam de encontrar vítimas. Deveriam ser chamadas assim porque não conhecem os responsáveis pela ação. Quem coloca uma bala no mundo pode tirar alguém dele. É claro que a geografia carioca privilegia em termos de estratégia os criminosos. Ainda assim, dá para melhorar e muito o método de captura de bandidos por aqui. A polícia do Paraná mostrou que é possível.

Papel

Marina do brejo

Como se não bastasse o miserê todo em que a gente já vive. Decidiram agora discutir CPI do Movimento Sem Terra. Dizem por aí que a intenção disso tudo, na verdade, é apenas dar um pouco mais de movimento ao nosso movimento. É que ele tem estado apagado ultimamente. Depois que a gente parou de despertar olhares curiosos da playboy, nossa auto-estima foi para o brejo. E pior. Nem o brejo é nosso.

A discussão leva tempo. É gente falando daqui, gente gritando de lá e por aí vai. Na minha família, para que se tenha idéia, o problema fundiário tem sido mais importante que a hérnia de disco da minha avó. E essa, coitada, não tem terra nem para morrer em paz.

Eu não sou muito do tipo que concorda com político não. Não gosto dessas coisas. Porque logo vem um e diz que a gente é safado. Mas a tal senadora lá falou bonito com relação a essa CPI. “Investigar só um lado é uma tentativa de criminalização de um aspecto do problema agrário muito maior no Brasil”. É isso. Com a CPI, não só estamos saindo das páginas da playboy, como também estamos entrando na capa da investigateboy. A partir de agora, se é que já não foi sempre assim, os criminosos somos nós.

Eu queria mesmo é ver funcionar CPI que investigasse invasão de familiares de políticos em cargos governamentais, invasão de direitos do cidadão, invasão de privacidade. Essas coisas que acontecem o tempo todo, mas que continuam sempre na mesma. Da mesma forma, no problema em que estamos, para que a CPI funcionasse, o que deveria ser investigado não é quem quer o brejo ou a quem o brejo pertence, mas sim, a quem ele deveria pertencer e em que proporções. Porque, se isso não for feito, o único dono do brejo será a vaca.

Semíramis

Caso de polícia

Como se já não bastassem os inúmeros escândalos envolvendo políticos e Suplicy andando de sunga pelo Senado, o prefeito de uma cidadezinha de Minas resolveu aprontar uma daquelas. João Carlos da Aparecida, do PT de Minas, foi pego em uma boca de fumo de sua cidade, Raposos. E não foi a primeira vez.

Nada contra o cara fumar ou cheirar o que ele quiser, mas ir para uma favela consumir drogas com um carro de prefeitura é petulância demais. Para piorar, depois de chegar à Delegacia e sequer conseguir prestar depoimento, o cidadão teve a coragem de dizer à imprensa que não falaria, usando a desculpa à la Vanusa de que estaria sob efeito de um medicamento muito forte. Crack agora é medicamento? Gostaria de saber que novo tipo de tratamento é esse.

João Carlos pediu licença da prefeitura para tratamento médico. Há quem diga que fez isso pensando em sua recuperação. Mas há cerca de 90% de chances da decisão ter sido tomada para que algo muito pior não ocorresse: seu impeachment. Afinal já foi formada uma comissão para levar adiante o processo de cassação de seu mandato.

Os usuários de drogas pegos em flagrante por policiais têm alegado: “se o prefeito pode, todos podem”, o que era de se esperar. O político que deveria seguir de exemplo e ajudar no combate ao tráfico de drogas, conseguiu subverter a ordem lógica de uma forma nunca feita anteriormente.

Histórias como essa nada mais são do que o reflexo do caos instalado na política brasileira. Não sabemos mais quem elegemos e estamos na mão de pessoas que não sabem separar sua vida pessoal de sua vida política.

Mel

Sossego

Depois de sobrevoar boa parte das minhas terras hoje à tarde, pisei em casa e pude ler o sagrado jornal. Com uma sensação de dever não cumprido porque mais uma vez não consegui vislumbrar toda a minha propriedade, o meu crescente pedaço de “chão do mundo”. Um único dia já não é mais suficiente, agora preciso de dois para fiscalizar os meus protegidos pés de laranja. Mais alguns anos e em três dias já ficaria apertado.

Eu tenho uma espécie de fixação pela propriedade, admito – isso é coisa comum –, uma fixação que começou ainda nos tempos do movimento. O movimento era o dos sem terra e eu, um dos seus inúmeros integrantes. Agora eles são, para mim, como pragas que se multiplicam. Pragas para as quais ainda não inventaram um inseticida específico. Eu era um deles, comecei de baixo, mas passados dois meses eu já freqüentava o alto escalão. No topo só chegam os mais ambiciosos e essa qualidade transborda em mim. Minha avó sempre dizia: “como você é articulado, menino!”; Uma pena ela ter visto que, na verdade, eu sou é um grande articulista...

Já com dois anos de movimento e algumas ocupações – nem sempre de terras improdutivas – no histórico, eu consegui comprar a minha primeira fazenda. Permaneci no movimento e contratei meu primeiro “laranja”, estava formado um verdadeiro ciclo vicioso.

O ciclo: eu comprava mais terras, quase todas as propriedades vizinhas da antiga fazenda hoje me pertencem, continuava no movimento e empregava mais “laranjas”. No entanto, com dez anos de movimento eu sumi do Brasil. Percorri os estados Unidos e a Europa e fui esquecido pelos companheiros de cá. Graças a deus, esquecido, era tudo o que eu queria. Saí do movimento e, por ironia, troquei meus 15 “laranjas” por incontáveis laranjeiras.

O motivo de ser deste registro não é qualquer arrependimento passado, mas sim a irritação causada por uma reportagem.Tenho dinheiro, terra, família. Já plantei muitas, mas muitas árvores, mesmo que todas iguais, e não escrevi nenhum livro, nem nunca quis. Ainda assim arrumam um jeito de tirar meu sossego.

A página 8 do jornal de hoje me mostrou que lá de Washington (que eu já visitei quando larguei o movimento) a Senadora Marina Silva pretende modificar a CPI dos assuntos agrícolas. Graças à minha imunidade latifundiária, até então eu estava tranqüilo, mas o problema é que a tal senhora de óculos quer incluir o que ela chamou jocosamente de “ruralistas” nas investigações. Não gosto dessa expressão, mas até onde eu sei, ela se refere ao grupo do qual faço parte. Mas, pensando melhor eu pergunto a vocês: Será que o Brasil está realmente mudando? E por quê, logo agora que eu me dei bem?

Jean Baptiste

Aprenda a se candidatar à presidência

Quem se lembra das eleições de 2006? E de uma candidata da oposição que defendia as questões “esquecidas” pela maioria e a participação das mulheres no poder executivo? Então, a nova feminista do poder político é a provável candidata à presidência pelo Partido Verde. E de tempos em tempos, ela apresenta suas opiniões de maneira exaltada, que sempre ganham destaque no alto da página da editoria País.

Desta vez, a senadora, pretensa presidente, questionou a CPI do MST. Como pode apenas um movimento ruralista ser investigado? Existem tantos movimentos agrários pelo país. Vamos investigar todos! Candidata nova da vez é assim: ganha espaço no grito.

Nas eleições de 2006, a candidata da blusinha branca de babados (uniforme de guerra!) gritou tanto no palanque que hoje ela é mais reconhecida e, claro, lembrada por causa do seu saltitante dente no meio de um discurso do que pelas suas ideias. (O que ela falava naquele momento mesmo?)

Por outro lado, a bola da vez, nem precisa abrir a boca para se tornar destaque. Esta dá aula de como aparecer na mídia e já é favorita nas pesquisas. Existem tantas coisas que ressaltam seu nome: apoio político, visual novo, calúnias sobre seu passado, doença grave etc. Quem precisa abrir a boca, antes do tempo, numa situação dessas?

Enquanto isso, o velho discurso da luta contra o preconceito de gêneros e das minorias ecoam entre os pequenos candidatos, os ataques ao discurso dos concorrentes também. Mas é assim que funciona, se não tem o que propor, o caminho é criticar o já dito e com veemência. Resumindo, criem polêmica! “Os atos falhos falam mais do que o discurso”, que frase de efeito! Toda aquela concepção de Freud junto com a análise do discurso... Nada disso. Apenas um ataque da emergente candidata a forte concorrente. Ela seguiu a lógica do: fale mal, mas com eficiência. Tal declaração ganhou destaque como subtítulo na página do jornal.

A época de eleição, e olha que ainda nem chegamos lá, apesar do chato horário eleitoral, também nos proporciona vários momentos de risos, piadinhas infalíveis feitas pelas mentes mais capciosas e criativas, as sacadas dos marqueteiros, a disputa de ibope na mídia etc. Mas, o candidato que se sobressai é aquele que apresenta uma causa que apenas ele defende.

A nova “Heloísa Helena”, só que revestida pelo PV do Acre, acredita que ela é a única candidata que se importa com a questão ambiental, em um momento que discutimos a poluição do meio ambiente em mesa de bar e trocamos nossas sacolas plásticas por sacos ecológicos. Pois bem, fiquem de olho se alguém quiser mencionar a questão ambiental na sua plataforma política, será uma ideia totalmente copiada da fértil mente da senadora acreana.

Qual será a próximo argumento dos pretensos candidatos para aparecer? Dou uma dica: crítica ao programa Bolsa Família. Talvez dê uma nota na primeira página.

Raposa do Pequeno Príncipe

Paraná

Não há dúvidas. A economia dos locais atingidos pela operação da Divisão Estadual de Narcóticos foi fortemente afetada. Campo Magro agora deve estar anoréxico, Almirante Tamandaré afogado, Colombo perdido de sua rota e Agudos do Sul mais boleado do que nunca. Foz do Iguaçu, então, agora secou de vez, com certeza. As palmas distribuídas nos jornais do país atestam a eficiência do que seria (impressionante!) o começo do “Paraná contra as drogas”, nome que inspira uma verdadeira mobilização generalizada e emocionante. Parabéns às divisões policiais envolvidas, que, até onde meus contatos e, assim, minha vã coleta de informações alcançam, saíram de moral limpa. E é claro, literalmente limpos, seus rostos tampados e braços musculosos estampados nos jornais. Tudo sem sangue.

Pensando em sangue, tenho uma proposta a fazer. Lembrando das últimas semanas de confronto entre polícia e tráfico no Rio de Janeiro... Veja bem, eu disse confronto, nada que remeta ao positivismo do nome e à assepsia da operação paranaense. Bem contrário, até. Mas acho que não preciso recorrer à origens das palavras ou dicionários para me fazer entender, tenho certeza de que o carioca tem prática, e nada como a prática no assunto para te fazer especialista nos jargões.

Pois eu me pego imaginando possibilidades pra lá de imaginárias. Imagina só (com força, eu sei): a polícia resolvem extender o exemplo do Paraná, só que no Rio. Desconsiderando toda a guerra civil antes deflagrada e chegando direto ao ponto da suposta glória policial, claro. O tráfico estaria absolutamente desarticulado, enfraquecido, as comunidades livres do domínio do comércio das drogas. Do comércio das drogas. O caminho está livre para novas possibilidades de domínio. E agora, o que seria dos milhares de demitidos pelo tráfico, das comunidades órfãs? Uma solução imediata: novos caminhos seriam abertos, ou ainda mais abertos, estuprados, escancarados para as formas de domínio alternativas. Foi tudo o empurrãozinho fantasiado de empurrão que a milícia precisava. Nada como uma boa política de exploração de serviços e submissão das comunidades para garantir aquele lucro.

Claro que a gente sempre pode pensar pelo lado otimista da questão. É quase que uma política de aquecimento e reformulação da economia narcotráfica. Com a operação, o material novinho, que acabara de chegar e nem embalado estava, veja só, todo perdido (sabe-se lá para quem). O tráfico restante, depois de reorganizado, vai precisar de novas remessas. A dobra da demanda vai estimular a produção. A oferta vai ser duplamente maior. Duplamente econômica! Duplamente lucrativa!

Joaquim Lima

A minha anta é o Stallone

Candidato novo a presidência precisa se armar até os dentes para entrar no campo de batalha do planalto, local de muitas baixas, baixarias e briga de saltos altos. Seja para se diferenciar dos políticos cara (plataforma) de paisagem, seja para se apoiar no anseio do povo pelo sangue dos mesmos. A novata Marina se veste de verde (graças a Deus não com aquela sunguinha rosa do Gabeira), entra chutando a porta e descarregando sua metralhadora giratória. Com um “quê” de Rambo, se me permitam o trocadilho silvestre (de selva, não do Stallone). Bem diferente de seu falecido mentor Chico Mendes, uma comparação que me agradaria bem mais de fazer do o troglodita que não perdoa ninguém. Como disse o soldado preso em cativeiro para o terrorista comunista no primeiro filme “Deus perdoa, Rambo não”, na tentativa mais infame de engrandecer um personagem. Mas não é que funcionou com ele, quem sabe sabe Marina não adota uma faixa vermelha e consegue chegar até a quarta versão. Sonho secreto de nosso atual presidente, que está mais para Denny DeVito.

Marina fala mal de CPI aqui, critica chefe da casa civil ali e nas horas vagas se dedica ao hobby favorito de todo candidato, criticar a plataforma dos outros. Afinal, quem não critica se trumbica... Ou algo do tipo. A nova filiada do PV parece ter ficado incomodada pelos outros pretendentes ao cargo do pingüim do Batman terem acrescentado ao seus discursos o seu “ganha voto”, o meio ambiente. Esperneio para a mãe, choramingou para o pai, mas seu dedo de politica não resistiu e logo saiu por ai apontando seus inimigos em local público. Visto que agora que esse tema se tornou preocupação de boa parte do eleitores não há nada mais natural que isso aconteça. Sua irritação pela popularização da plataforma que parece ser algo não natural. Assim como a CPI do MST.

Falar mal de politico que é sim algo natural. Eu faço, Marina faz, Diogo faz. Mas o que diferencia Mainardi de mim é a anta. E o que diferencia Marina dos outros é o Stallone. Não venho aqui pisar em uns e defender outros. O que só não em desce bem é politico que se exclui da sujeira do seu local de trabalho... Ah! E é claro de ter um presidente que se candidatou como o guerreiro salvador estilo Schwarzenegger e por passe de mágica da sessão da tarde se transformou no irmão gemio DeVito.

Jefferson Rocha

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O alpiste

O garoto astuto e perspicaz vestia terno, gravata, bermuda e ceroulas, embora estivesse quente – insuportavelmente quente. Quente e abafado, quente e moroso, asfixiante e desértico e todos os adjetivos pertinentes e impertinentes como esse calor, esse calor quente. Ele era levemente vesgo, torto, caído para os lados, às vezes hesitando à esquerda das calçadas, às vezes à direita dos transeuntes. Ele parecia pensar o mundo e todas as coisas e todas as coisas pertencentes ao mundo e tudo, absolutamente tudo – tudo – ao mesmo tempo. Parecia genial e imbecil, às vezes sobretudo imbecil, às vezes sobretudo genial. Pouco sobretudo genial.

Imbecil, de fato. Não era destacável, não era bonito, exageradamente estranho, gordo ou magro. Era mesmo inútil e descartável, gostava de Thomas Mann, Alison Krauss e Visconti; começara a estudar termodinâmica aos 8, envolvido com experimentos hercúleos inflamados pela obscuridade da garagem. Ele moldava tapetes e criava acácias, plantava sobriedades e colhia mexilhões; e sim, isso era perfeitamente possível. Gostava de ceroulas e trapaceiros, gostava dos dados, das prostitutas e das alegorias carnavalescas – e gostava de Michael Caine pouco pelas atuações magistrais e muito pelo trocadilho narcótico e infame.

E andava alegre e distraído pelas ruas de Amsterdã levando os mexilhões para passear; e sim, isso era perfeitamente possível. Ele colocava apelidos nos animais e mantinha segredo sobre os apelidos colocados. E preferia chorar lágrimas contrárias à gravidade, tentando tornar possíveis, também, esses desvarios.

Malaquias veio ao jovem e disse, profético e apocalíptico:

- O parnasiano comprou flores, visitou os vasos e terminou tocando o derradeiro tango argentino.

E o menino respondeu, truculento:

- Mas e se as mágoas taciturnas de Vinícius estivessem aqui, seríamos tão infelizes?

Ele contava, então, com apenas 6 anos de amargura e alcoolismo. E discursou:

- Sente-se e espere meu monólogo sobre a dialética.

Malaquias sentou.

Eles estavam próximos à avenida Dimensional IV. O enxofre estava próximo, e os mexilhões sentiam o vento indicando o aroma atípico e casual. O garoto arriscou levantar as pálpebras; e olhou a placa metálica e ilegível, anunciando: “Todos os artefatos inexistentes do universo e a biblioteca de Babel”.

E o monólogo começou:

Mamãe eu quero o prisma eu quero aquele prisma pra mim eu quero eu quero e mamãe por que você não me dá o prisma ele é bonito ele é azul ele é verde e é todas as cores olha só mamãe por que você não olha pra mim por que você está com essa roupa e por que você nunca me dá nada e por que o prisma é verde mamãe mamãe eu quero quero quero e eu quero e você vai me dar porque você é a minha mãe e você é tudo e você é todas e você é a absoluta imprecisão das verdades reverberantes e magnéticas do desfalecimento da memória. Mamãe, mamãe eu te amo e você me ama mas me dá o prisma me dá o prisma ele é bonito ele é lindo ele é lindo e eu vou ter cuidado e vou estudar fazer os deveres e chorar e nunca chorar e eu não sei mamãe, mas você me ama, mas você me ignora e você nunca olha pra mim e eu quero morrer porque você não me deu o prisma e pronto, morri.

Ele buscou a mochila, comprou o pacote, vendeu as imagens e terminou, enfim, acalentado pela melodia do Chico.

E amanheceu pacífico; e tudo era perfeitamente normal e aceitável.

Ou não.


Pato Donald

O idiota

O idiota é aquele sujeito que passa com o carro na poça só de sacanagem. Um minuto depois, você está completamente molhado e ele, rindo. Pode ser também o que fala algo incompreensível, só para você pedir para repetir e ele fazer uma gracinha depois. Um legítimo boçal não mede esforços para te tirar do sério. E é chato. Ri sozinho das suas piadas, conta várias vezes a mesma história e insiste em tocar em você durante o papo. E aquele que se acha um comediante stand up e te critica para uma platéia em alto e bom som? Não tarda a falar das suas gordurinhas a mais, da roupa que você veste e o que fala. Esse tipo seria capaz até de fazer uma crônica que criticasse pessoas. Como essa. A diferença é que eu não sou idiota e nem chato. E ai de quem disser o contrário!

Existe também o babaca ilustrado. Esse prefere problematizar sistematicamente uma situação cujo enfoque contextual ensejaria obviamente uma ótica mais adequada ao entendimento global. Ou seja: complicar o que é fácil. Outra versão é o Einstein. Para ele, tudo é relativo. Está sempre em cima do muro. Vale lembrar que tudo que está sendo dito aqui serve para as mulheres. Vamos usá-las para introduzir o marco da pós – modernidade: a geração de plástico. Essa espécie rejeita a condição humana e persegue vorazmente o modelo boneca fashion. Em alguns casos, você aperta a barriga delas e ouve frases prontas. Tem umas que chegam a falar cinco frases! Super legal.

Idiotas não entram em extinção. Eles se multiplicam. Acho até que as pessoas devem gostar deles. Por que não somem? Para onde quer que você vá, não importa quando, esteja certo de cruzar com um. Talvez haja um pouco deles no DNA de todos nós. Tem sempre um idiota no espelho mais perto de você.


Papel
- Tá bom, mãe. Pô, já falei que eu vou voltar de carona.

- Mas se cuida, então.

- Até parece que não me conhece, mulher! Beijos.

Pedro se considerava um adolescente normal que errava dentro da medida do esperado para os adolescentes comuns dos “tempos de experimentação”. Tinha tido algumas namoradas, traiu a primeira com a segunda e essa com a posterior, mas nada de caso pensado, e não que achasse isso certo. Simplesmente ele não parava para pensar muito a respeito e, afinal, ele não tinha prometido amor eterno. Achava sempre que com a atual é que era, essa sim, um relacionamento maduro.

Era do grêmio da escola e implicava com o pessoal do clube de xadrez, mas não chegava a sentir especial prazer nas perseguições organizadas pelos por alguns amigos. Também não se manifestava contra. Recebia uma mesada que dividia em duas parcelas: uma para comprar um carro e a outra para saídas. Saídas que envolviam beber, mas dezessete anos é quase dezoito e ele se considerava extremamente equilibrado e consciente.

Nunca chegou a pegar o carro da mãe e sair alcoolizado, mas aceitava uma carona ou outra quando considerava que o estado do motorista não representava perigo. Já era uma grana que economizava no táxi. Matava algumas aulas como todo mundo da sua idade, mas nunca chegou a perder o ano. E o curso de inglês era tão chato! Ele queria mesmo era fazer um intercâmbio, mas não sobrava dinheiro pra isso.

Jogava altinho na praia nos fins de semana e lá se envolvia com todo tipo de gente. No posto 9 de bermuda e sem camisa você não sabe quem é quem. Um dia foi chamado pra uma festa num sítio e lá rolou maconha. Ele aceitou, só pra ver como era. Nunca pensou em virar dependente ou coisa assim, ele não era cabeça fraca pra isso. A mãe queria saber de quem era o churrasco, ele disse que era de um amigo e não contou qual. Não era de nenhum amigo, mas era amigo de amigo, e ele tinha carona pra voltar.

Pra quem nunca tinha fumado nem cigarro convencional, até que ele foi bem. O problema é que os vizinhos, já cansados daquele tipo de festa com seu cheiro e o som nas alturas, ligaram pra polícia. Tinha tanta bebida, e ele, menor de idade, correu com todo mundo pra entrar nos carros, pular o muro ou o que fosse pra não ter que acordar a mãe no meio da noite e depois ouvir lição de moral em casa. Colocou uma garrafa de vodka embaixo da camisa, ele sempre quis uma garrafa daquela vodka polonesa, e se ela ali ia ficar pros policias.

- O que é que você tem aí escondido?

- Nada, pô.

- Então joga no chão e bota a mão na cabeça.

- A mão na cabeça? Há há, ta maluco. Não sou pivete não, porra.

- Joga essa merda no chão e bota a mão na cabeça.

“Ah, fala sério! Que PM babaca.” A reação foi rápida, ele ia tirar a garrafa e mostrar logo o que era, mesmo se ele tivesse que ser levado, depois ele se entendia com a mãe. Não era possível que ela achasse que ele nunca tinha bebido ou fumado um baseado. “Merda!”, o policial atirou. Atirou de novo. Foram dois estalos secos. Um nas costas e o outro na direção do ombro esquerdo.

O celular tocou. A mãe sempre achava que nessas festas de adolescente nunca tem comida e ela queria dizer que não tinha nada demais na geladeira, mas tinha dinheiro pra pedir alguma coisa, se ele chegasse com fome. Não seria necessário.


Srta. Bones I

A.R. - 15

14 de maio de 1991: Maria Silva vem do Nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro.

Até aqui, nenhuma novidade. Maria é apenas mais uma mulher que veio para a grande cidade em busca de ilusão. Sem nenhum estudo, planejamento, dinheiro e expectativa acabou por morar em uma espécie de cortiço no alto da favela da Rocinha.

Humilde mulher, com apenas 19 anos começou a trabalhar em uma linda mansão em São Conrado em troca de um pouco de dinheiro e um pouco de estudo.

Casou-se com Anderson Ribeiro,um rapaz igualmente jovem da própria comunidade, e passou-se a chamar Maria Silva Ribeiro. Juntos construíram um pequeno lar com apenas um quarto e uma cozinha/banheiro.

Engravidou 5 vezes, mas apenas o último filho vingou. (os dois primeiros morreram na gestação e os outros 2 não passaram dos 4 meses de vida).

Porém, quando seu quinto e único filho passou do primeiro ano, quem morreu foi seu marido. Causa da morte: bala perdida.

A mulher de nome santo estava sendo apunhalada pelo fantasma da morte mais uma vez.

Ela já havia passado pela dor da fome, a dor de não ter um lar, a dor da decepção de ter abandonado a sua terra natal em busca de uma ilusão. Ela sentia saudades das suas irmãs, sentia saudades de seus pais, já tinha sido espancada sem motivo, mas ela tinha certeza que nada se comparava a dor de perder alguém que se ama. (e pela quinta vez ela sentia essa dor).

Por mais que ainda tivesse um filho, Maria sentia-se sozinha, Maria não queria mais viver... De luto, toda favela se apagou e chorou com Maria...

Rio de Janeiro, ano de 2009. A Rocinha cresceu, ganhou uma nova dinâmica e muitas novas “marias” que vieram tentar a sorte no Rio de Janeiro.

O tráfico de drogas cresceu assim como o número de tiroteios, o preconceito e medo dos moradores da Zona Sul e Oeste em relação à Rocinha. Mais do que nunca morador de favela virou sinônimo de bandido. (grande tolice da humanidade...).

Realmente não é nada fácil você ser o elo fraco da desigualdade social, não ter o que comer e o que vestir no frio e ainda conseguir dizer NÃO para as ofertas ilícitas, porém fáceis de conseguir dinheiro. Mas felizmente existem pessoas que conseguem dizer “não”.

Na própria Rocinha, das muitas “marias”, um jovem se destacava por essa força de vontade.

Era alto, moreno escuro de cabelos lisos e negros. Seu corpo raquítico suportava uma vontade de crescer na vida sem igual.

Vendia doces em sinais de trânsito e cerveja nos finais de semana de sol nas praias da Zona Sul. Com o dinheiro que arrecadava ajuda sua mãe, comprava cadernos, livros e juntava o pouquinho que sobrava para um dia comprar tênis especiais para prática de corridas. Era um dos poucos jovens de sua região que lia com perfeição e que era ótimo em matemática.

Por sinal,seu talento em matemática chamava a atenção dos chefões do tráfico que insistiam em chamá-lo para trabalhar junto com eles como uma espécie de tesoureiro. Mas ele de forma inacreditável negava o convite sem despertar a ira deles.

Ele sempre falava que queria ser exceção. Se no morro todo mundo era bandido, ele não ia ser. Se todo mundo não sabia ler, ele ia saber com excelência. Se todos usassem drogas ele seguir a vida em pró da saúde e do esporte.E seguindo esta lógica ele superava-se a cada dia o que só alimentava o seu sonho de ser médico e/ou maratonista.

No dia 2 de outubro, seu lado atleta falou mais alto que seu lado médico e ele não trabalhou, não estudou. Tirou o dia para ficar concentrado na praia de Copacabana aguardando a escolha da cidade sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Sonhava com a escolha do Rio, pois acreditava que poderia ter a chance de competir na Cidade Maravilhosa.

Acho que nenhum dia foi tão longo para ele quanto o 2 de outubro de 2009. E quanto mais próximo ficava da anunciação, mais ele sofria.

Eis que na TV, um gringo de cabelos brancos deu a esperava notícia: O Rio iria sediar as Olimpíadas de 2016.

Neste momento seu lado maratonista praticamente anulou seu lado médico. Ele gritava,chorava e sambava ao som da bateria do Salgueiro. Teve vontade de ir correndo de Copacabana até a Rocinha para já ir treinando, no entanto, chegando no Leblon seus pés descalços não aguentaram e ele pegou um ônibus.

Ao chegar à favela, iluminou o morro com seu sorriso. Sua mãe tinha medo dele se iludir, afinal sabia que dificilmente seu filho ia ter a oportunidade de ser descoberto pelo esporte, mas naquele dia, ela não falou nada e deixou seu menino sorrir.

Uma semana depois, uma operação policial a fim de começar a eliminar a criminalidade na cidade eleita como sede das Olimpíadas de 2016, invadiu a Rocinha de madrugada. O morro que estava até com uma atmosfera melhor, uma vez que fora convencido por um menino raquítico que aquele lugar ia melhorar por causa das Olimpíadas, voltava a viver o terror da realidade.

A noite escura foi iluminada não mais por um sorriso, mas por tiros de fuzis.

Na manhã seguinte, os moradores viram pela janela o resultado na noite de terror. Inúmeros corpos estavam espalhados pelos corredores estreitos da favela. A fúnebre cena e o medo de ainda não ter acabado impedia que muitos saíssem de seus barracos.

O único som que abalava o silêncio daquele lugar era o choro de uma mulher, um choro que a Rocinha não escutava há 14 anos. Era o choro de Maria Ribeiro que em total desalento abraçava o corpo de um rapaz alto, raquítico, de pele morena escura e cabelos lisos e negros. O rapaz atirado no chão era André Ribeiro – 15 anos. O quinto, único e último filho de Maria Ribeiro – 27 anos que perdeu a sua vida por conseqüência das primeiras medidas para melhorar o Rio de Janeiro – a sede dos Jogos Olímpicos que André tanto sonhava em participar.


Vento

Casa

Não sou do tempo em que se nascia em casa, tempo de parteira e tempo de espera. Já nasci nos 80, época mais recente, em que as mães saíam de casa rumo ao hospital para voltar com mais um integrante da família. O dia marcado para o nascimento, aliás, é um daqueles momentos inesquecíveis, que marcam a vida da gente. Bolsas de roupa, fraldas, mãe, pai, apreensão. Momento final: o bebê. Ou momento primeiro, olhando com os olhos de quem vê ali uma vida nova, ponto de partida.

Mas não é sobre bebês ou tampouco parteiras que vou falar no texto que segue. Queira o leitor compreender que, estando fora de casa, bate agora uma falta daquela coisa boa do lar. Quarto, sala, cozinha. A casa da gente guarda uma vida própria. Cheiro de casa, gosto de casa. Eu sinto que, dentro dos limites impostos pelas paredes desse lugar único e particular, eu sou eu, você é você e ela pode até ser ele, se assim quiser. Dentro de casa todo mundo é invisível – para o mundo – e transparente para si próprio.

O dia de trabalho acaba, fecho a porta. Quero deixar pra fora o espanto da liberdade, o cansaço das coisas vividas. Acontece que – fato imutável – tudo isso tem vida própria e, pelo buraco da fechadura ou na sola do sapato, tudo entra comigo. Inevitável. Eles entram em fila. As conversas pendentes, textos pra ler, a bronca do chefe, o salto do sapato novo quebrado... Tudo se mistura e, no final do dia, vai pra casa comigo.

O que foi bom, o que formou no rosto um sorriso grande naquele dia, eu guardo na caixa de madeira do lado da cama. Do lado da cama. Deve estar perto para que eu possa sempre lançar mão quando o mais difícil na noite é ter bons sonhos. Abro a caixa, escolho um. O telefonema da amiga da escola, o olhar querendo dizer muito, a sobremesa tão esperada durante toda a semana... Não, não! Hoje vou escolher o oi da saída do elevador. Coloco debaixo do travesseiro e durmo melhor. Para quem pensava que passava invisível aos olhos dele, ganhar um oi despretensioso teria mesmo que valer um sonho.

Um sonho ou até dois, um conjunto deles. Durante toda aquela semana não precisei da caixa de madeira. Ela só se enchia cada vez mais das coisas boas.

Essa é a magia da casa, pra mim. Saber que precisando ou não do afago certo que ela dá, ela vai estar ali. Imóvel, literalmente. É como a minha caixa que, como um consolo, eu vejo todo dia e sei que se os fantasmas chegarem – esses que se escondem debaixo da cama, na porta do armário e na sombra da parede – ela vai estar ali, e meu medo vai passar. Ela cala, ela fala. A casa.

Como se mata uma lembrança

Uma frase de Adriana Lunardi me pegou pelos pés. “A existência, como se sabe, é uma noção dada pelo tempo”. Se tudo que já aconteceu só deixa certeza de sua existência pela lembrança deixada, o tempo faz questão de apagar. É preciso isolar até matar de solidão o que nos liga ao passado indesejado. Conto lhes como exemplo a história de um amigo de um amigo meu. Mesmo sabendo todos os detalhes do acontecido juro de pé junto que não fui eu:

Adriano sempre se surpreendeu com sua falta de bom senso. Não bastava já morar na mesma rua que Ana, tinha que se oferecer para cuidar do cachorro enquanto ela viajava? “Não se preocupe Adriano, Thor já te conheci, não vai dar trabalho algum” ela falou ao telefone enquanto ele anotava tudo que era preciso fazer. Regar as plantas, recolher a correspondência e deixar na estante sobre a pia. “Para que eu estou falando isso se você já sabe tudo?”. Adriano sabia mesmo? Sabia nada! A mais de um ano Ana era só uma lembrança desbotada. Hoje nem mais a cor de seus olhos ele conseguia se lembrar com certeza. E mesmo que continuasse sem a ver, a ideia de cuidar de Thor por amizade soava cada vez mais ridícula.

No dia seguinte, por pouco os joelhos não falharam e provocaram a sua queda no meio da sala. Estranhamente ainda a mesma sala, intacta de antigos verões, até o controle remoto continuava no lugar de sempre, escondido no vão da almofada esquerda do sofá. Só as paredes que não mais tinha as fotos do antigo casal. Para Adriano isso fora um choque. Ele percorreu a casa com Thor em seus calcanhares balançando o rabo de alegria. Ascendeu um cigarro para disfarçar o perfume de Ana impregnado no ambiente. Foi até o aparelho de som e tirou o cd do Chico Buarque, que de tanto tempo que estava ali não se sabia o paradeiro de sua caixa. “Coloca Chico pra gente Dri?” falou Ana através da voz azeda de Adriano. “Chico agora vai dormir! Chegou a vez do Jorge Ben”. E ele colocou um antigo cd seu perdido em meio aos muitos dela. Sem seu cheiro e sem seu barulho aquela casa já não lhe causava tantos calafrios. Havia usado a mesma tática para apagá-la do resto da sua vida.

Só depois disso ele deu o primeiro afago em Thor, que então deitou num canto e liberou a casa para ele. Adriano foi sozinho até o quarto, evitando fazer qualquer barulho (para ninguém). Ainda azul, ainda com os mesmos objetos e com a mesma mancha de cigarro no tapete, culpa dele. Mesmo se as paredes falassem não diriam nada, só o encarariam com um silêncio constrangedor. Adriano abriu o armário e se deparou com a primeira mudança. O conteúdo já não era mais tão igual assim. Pegou nas mãos um vestido que nunca vira antes (e mesmo assim, a cara de Ana) e seguindo uma vontade sem explicação, o vestiu. Alisava a próprio corpo em frente ao espelho. Os peitos deixavam a desejar, mas o quadril trabalharia muito bem nas ruas de Copacabana. Jurou pela coca-cola que tomava que não havia nada demais no que estava fazendo. Adicionou um chapéu e um charpe à Adri-Ana. Mas na procura de algo melhor encontrou sua antiga jaqueta. No susto, deixou o cigarro cair e queimar novamente o tapete, mas não era pra menos, andava procurando aquela jaqueta a mais de um ano. Era sua favorita. E de Ana também. Não fazia ideia de que ela estava ali, de que parte dele ainda estava dentro daquele armário.

A brincadeira perdera toda a graça, Adriano resolveu desligar a música e ir dormir.

Sonhou com sua jaqueta e com Ana dentro dela. Ela vinha em sua direção com seu olhar dengoso, que há muito não via. Pronta para dizer algo. Ele interrompe. “Essa jaqueta é minha!” Ela fecha a cara. “Você veio aqui por causa de mim ou da jaqueta?!”. Ela tira a jaqueta e joga nele. “A jaqueta ainda é minha, você não...”

Adriano acorda ao som da campainha berrando. Assustado corre até a porta. Atende sem pensar. É apenas o carteiro vestido de amarelo e ele recebe as cartas de vestido longo de flores do campo. Deixa as cartas na estante em cima da pia e nota que ainda não fizera nada que lhe foi pedido. Thor lambia um pote vazio em desespero e as plantas murchavam. Adriano correu contra o tempo e contra a irresponsabilidade que iria cair em seus ombros. Ana daria um chilique com certeza.

Foi devolver o vestido apresado, mas não que por muito acidente encontrou um caixa de sapatos no fundo do armário. Ele abriu, mesmo sabendo o que isso iria dar no fim. Estava tudo ali em fotos. O primeiro encontro a viagem pra Búzios o segundo aniversário de namoro o natal na casa da família dela o dia que Thor nasceu o primeiro aniversário de namoro Adriano dormindo Thor dançando Chico o último encontro Adriano lavando a louça de vestido Ana gritando numa montanha russa o último aniversário. Fotos que antes se penduravam na sala, no quarto e até tinha uma bem engraçada no banheiro. Adriano pegou sua favorita chorando sem fazer barulho e guardou o restante. Picou em milhares de pedacinhos e misturou na comida de Thor, na água para as plantas e nas cinzas do cinzeiro. Trancou a porta e foi trabalhar com sua jaqueta.


Jefferson Rocha

Gente boa

Jesus era gente boa. O Senna era gente boa. O Dom Pedro II, dizem, era gente boa. A madre Teresa de Calcutá era gente boa. Também o Zumbi, a Chiquinha Gonzaga, o Martin Luther King, o Gandhi, Saão Francisco de Assis, enfim... todos gente boa. Mas essa galera toda, infelizmente, já morreu. Fazer o quê? Paciência. Todo mundo tem que morrer um dia. Agora gente boa, boa mesmo, pra mim, é o Sarney.

Pára pra pensar. Homem bom, caridoso, com um coração grandão assim que mal cabe no peito. Nordestino, ele superou o preconceito e venceu na vida. Liderou o Brasil depois de anos uma marcha fúnebre, literalmente. Foi o primeiro presidente civil a assumir o poder depois de décadas de ditadura militar. Não é todo mundo que agüenta isso não... Generoso, ele não hesita em dividir. Conseguiu um monte de coisas e quer mais é que os outros tenham o mesmo. E nada mais natural do que querer dividir isso tudo com as pessoas que ele mais ama, especialmente os familiares e amigos.

Corajoso. Todo mundo aí falando um monte de coisa sobre ele e o homem continua lá, firme e forte. Seguindo em frente de cabeça erguida. E a humildade? Nossa... Ele não tem medo de perder o lugar onde está não. Ele mesmo diz, se quiserem me tirar daqui, podem tirar.

Enfim, eu podia ficar aqui me rasgando de elogios, mas acho que já deu pra ter uma certa idéia do nível de quem estamos falando. Claro que todas essas personalidades que eu citei no começo têm suas muitas qualidades, mas para mim, não tem competição. Eles são todos pessoas bem legais, mas agora, gente boa, boa mesmo, só o Sarney.


Lois Lane

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Gente boníssima

O maior gente boa que eu conheço é o meu pai. Não é que o malandrinho se dá bem com todo mundo? Não sei explicar direito porque ele é gente boa, isso é coisa que só se vê no dia-a-dia: ele é político e ele é charmoso – não no sentido literal, não com aquela barriguinha de oito meses de gestação de gêmeos gordos –. Sinal disso é quando os SEUS amigos vão te visitar e não querem sair da cozinha porque lá “tá legal”.

Ele é irritantemente cativante. Aos 48 começou uma faculdade com a desculpa de passar o tempo. Com dois meses já estava ganhando festinha surpresa da garotada de ADM da Estácio. Mais conhecido como “velho”, “coroa” ou “tio”, recebeu um tragicômico carro de mensagens com direito a espuma, tapete vermelho, coroa e megafone. No primeiro período, porque no aniversário seguinte a galera já tinha aquela intimidade e a animadora do carro de mensagens não era mais a moça do braço quebrado, mas um autêntico travesti cantando “At first I was afraid, I was petrified” na porta da nossa casa e chamando minha mãe de baranga.

E ele é gente boa porque eu nunca levei uma palmada. Eu nunca nem tive que ouvir broncas gritadas a plenos pulmões, a gente sempre batia altos papos como se minhas conversas aos seis anos fossem tão relevantes quanto a paralisação de funcionários da empresa dele. Eu me sentia gente grande. E ele é gente boa porque quando eu estou surtando com minha velhice – vinte anos não é pra qualquer um não – ele me fala dos planos pós-aposentadoria. É mesmo um bon-vivant. Me diz que a gente tem a idade que sentimos ter.

É gente boa porque quando vamos fazer compras pegamos um carrinho só nosso, separado do da minha mãe. No dela se concentram toda a sorte de coisas saudáveis e cascudas. No nosso só o trivial: chocolate, sorvete, congelados, cerveja e amendoim pros jogos do Premiére Futebol Clube e Pringles, afinal, se mente sã é corpo são, o inverso também se aplica. E mesmo com toda essa garotice ele é a pessoa com mais senso de justiça que eu conheço, ainda me admira ver como ele sempre sabe o certo a dizer e fazer. Mais ou menos no estilo daquele faxineiro do Planalto que achou a mala recheada e devolveu.

E ele é gente boa porque sempre que eu vou de alguma night tem um lanche me esperando dentro do forno. As vezes ele acorda, me vê naquele estado deplorável e diz “você é fraquinha, quando eu tinha sua idade já passei três dias virado” e eu respondo “mas o aprendiz nunca supera o mestre”. E nem quero.
Srta. Bones I

Gente boa

Certa vez, estava Valdirene a caminho do mercado, quando ouviu falar do concurso “Gente Boa 2009”. Nunca houve nada parecido na pacata cidade de Brumadinho, confins de Minas. Toda a gente estava animada. Olha que até os jornalistas iam cobrir o evento! Valdirene não teve dúvidas. Queria ser gente boa. Só tinha um problema. Ela não fazia idéia de como fazer para ganhar o concurso. Ao vencedor, uma medalha e uma entrevista no jornal. Com foto e tudo! Começou a pensar. Não vinha nada à mente. Decidiu conversar com as pessoas. Só que não conhecia ninguém. Valdirene chegara à cidade há menos de um ano para tentar a vida em um lugar humilde. Em Belo horizonte, onde morava, não conseguia emprego. A concorrência é grande para quem tem pouco estudo. Tem sempre alguém mais preparado. Ainda não trabalhava em Brumadinho, mas tinha esperanças. Sabia fazer comida, arrumar casa como ninguém e levava jeito para artes manuais. Só que não conhecia ninguém. Então, como descobriria o que é ser gente boa. Foi então que ela bolou um plano. Não perguntaria de cara. É melhor falar aos poucos.

A igreja foi o lugar escolhido para começar. Lá ela soube que ser gente boa é ajudar o próximo, fazer caridade e rezar sempre. Foi o que fez. Sempre tinha um troco ou um pão para dar os mendigos, doava roupas e brinquedos para o orfanato da cidade e participava do grupo de oração da igreja. Não demorou a ser conhecida por todos de lá. O próximo passo foi se inscrever no concurso.

Só que um dia desses, na volta para casa, ela ouviu um grupo de rapazes comentarem que a Sabrina, filha do Gomes, era boa. Os motivos fariam corar um cantor de funk. Mas ela era boa. Isso poderia lhe tirar o futuro título. Descobriu que, para ser boa como a Sabrina, ela teria que fazer exercícios. Sorte que a pensão do pai deu para se matricular em uma academia. Em uma semana, aprendeu com os novos amigos todas as dicas para ser saudável e bonita.

Pouco a pouco, encontrar conhecidos na rua passou a ser comum. As pessoas faziam questão de apresentá-la a seus acompanhantes. Em troca, Valdirene retribuía com sorrisos e olhar atento. Gostava de ouvir a todos. Interessava – se pela vida deles e o que os faziam especiais. Mas ainda não sabia bem como ser gente boa.

Até hoje ela não entende como venceu o concurso. Afinal, não era boa como a irmã da igreja, nem como a Sabrina. Bem que tentou, mas essas coisas levam tempo. O que ela não sabia é que toda vez que alguém falava sobre ela, fechava a frase com: gente boa demais a Valdirene.
Papel

Gente boa

“Não precisava dar um tiro na cabeça dele”. Todos devem ter ficado sabendo do assalto que aconteceu na Tijuca, na tarde da última sexta-feira. Um homem fez uma refém e ameaçou explodir uma granada. A polícia, para impedir um desastre, atirou na cabeça do assaltante. A frase que abre a crônica foi dita pela irmã do rapaz, que se chamava Sérgio Pereira Pinto Júnior. Sim, ele tinha nome!

Eu estava decidido a ignorar os comentários a respeito do acontecimento e, até mesmo, a me retirar das discussões – o que, para mim, é uma tarefa realmente complicada. Antes, procurei abstrair as considerações sobre a morte de Sérgio (decidi chamá-lo por seu nome, não por “assaltante”, “criminoso” ou algo do tipo). Bem, como ia dizendo, as considerações sobre sua morte estavam sendo feitas em tempo real dentro de minha casa. Meus pais e irmãos comentando, ou melhor, comemorando a ação da polícia. Eu evitei passar pela sala para que ninguém pedisse minha opinião, pois ela, invariavelmente, gera polêmica. E me faltava paciência para discutir naquele momento. Aliás, faz tempo que me falta paciência para debates do tipo.

Estava conseguindo levar um dia calmo, livre de problemas, até que esbarrei com dois conhecidos na rua. Eles comentavam, com fervor, que a cena do boné de Sérgio voando no momento do tiro havia sido uma das mais bonitas a que haviam assistido na vida. Confesso que tive espamos musculares na hora. Foi necessária uma altíssima dose de autocontrole para não começar a esbravejar o que penso com considerável dose de estupidez. Obtive sucesso e consegui ficar quieto. Até agora, pelo menos, quando resolvi escrever para liberar minha implicância com grande parte da sociedade. Às vezes, um pouco de misantropia faz bem.

Só que a minha misantropia é, ou, pelo menos, tenta ser democrática, ao contrário da que manifesta a classe média brasileira, da qual faço parte. Existe um maniqueísmo quase doentio em nossa sociedade, e é ele quem me causa profunda irritação. É preciso encontrar um inimigo. No nosso caso, o inimigo é o tráfico de drogas e tudo o que dele surge como conseqüência. É comum ver a mídia e as pessoas falando em “gente de bem”. Quem é de bem trabalha, não usa drogas, não rouba e não trafica, além de possuir alguns outros predicados. E quem não é de bem é o quê? Não precisa muita esperteza para concluir que a criminalidade e a violência urbana sejam resultado principalmente de uma forte e covarde desigualdade social. Não se trata de defender a delinqüência, mas de entender a razão pela qual ela existe. E de não naturalizar o bandido como um inimigo a ser combatido e exterminado. Porque o inimigo não é a violência que começa basicamente nas comunidades pobres. O inimigo é a violência da não-educação, da indiferença e da falta de emprego. O inimigo é uma sociedade estruturada de um jeito, digamos, torto, que jamais poderá “dar certo”.

E então o leitor me pergunta, com razão, o que fazer com a criminalidade, como punir, enfim como resolver o problema. E eu respondo categoricamente que não faço a menor idéia. Se nem Foucault, que concluiu que o Sistema Penal, tal qual ele é, jamais irá funcionar, eu, que nem a graduação concluí ainda, não tenho nada a sugerir. Só não acredito que haja uma linha divisória entre “gente boa” e “gente má”. E não consigo entender como uma pessoa que acredita que esta divisão exista e que se considere no campo da “gente boa” tenha um acesso de alegria assistindo à decolagem do boné de um homem que acabou de levar um tiro na cabeça. Não sei se a polícia teria outra solução. Talvez atirar fosse a única alternativa, apesar de discordar que houvesse necessidade de matar. De qualquer forma, não me sinto vingado ao ver um bandido, no caso, o Sérgio, sendo morto. É tão ruim quanto teria sido vê-lo explodir a granada. Aproveito para lembrá-lo, leitor: Sérgio também era um ser humano.

Quando tenho meus momentos de misantropia, ela se dirige a todos, sem exceção, com o perdão da redundância. Recuso-me a detestar uma classe em especial, pois isso seria de uma atitude de requinte quase sádico. Mais sádico ainda quando o pano de fundo é Brasil, país onde, historicamente, a delinqüência resulta das péssimas condições de existência. Foi assim nas senzalas, foi assim no cangaço e é assim que é nos morros e subúrbios cariocas. Mas a gente boa, “de bem”, continua sentindo êxtase vendo os que ela considera “de mal” sendo exterminados. Acredito que seja mais fácil assim: a existência se torna confortável se naturalizamos uma parte que desanda da sociedade, seja lá por qual motivo, como algo a ser combatido e erradicado.

Perdoem a acidez. É que o boné de Sérgio Pereira Pinto Júnior me fez lembrar o boné de Pedro Bala, o capitão da areia de Jorge Amado. E minha misantropia se acentua quando constata que, 72 anos mais tarde, o drama ainda é exatamente o mesmo, assim como a nossa sociedade. Novamente, perdoem a acidez.
Bertholdo

Gente boa

Cerca de alguns anos conheci um cara que eu chamaria pelo termo “gente boa”. Isso faz aproximadamente uns sete anos. Quando o conheci, obviamente, era mais tímido e não demonstrava confiança alguma a mim. Não se aproximava muito, normalmente não demonstrava emoções; só se manifestava para pedir alguma coisa. De fato, como esperar que alguém que acaba de chegar ao seu cotidiano já confie inteiramente em você?

Com o tempo se revelou um grande parceiro. Mesmo em tempos difíceis, daqueles que desanimam qualquer um, ele não saía do lado. Fosse chuva, ventania, sol forte, ele não arredava o pé de seu posto! Seu único ponto fraco eram os raios e trovões, o que nunca teve vergonha de admitir. Mas, independente do medo, estava ao meu lado. Quando eu caía por alguma mazela selvagem, era certo que até na enfermaria ele faria questão de estar.

E companheiro de guerra que se preze sempre tem história pra contar né? Lembro-me quando ele foi atropelado e tive de carregá-lo no lombo selva adentro até chegarmos ao acampamento. Houve outra vez em que o fizeram de refém e, para salva-lo, tivemos de traçar um plano de resgate audacioso, onde acabamos perdendo dois soldados. Sem esquecer de quando tivemos que iniciar operações de busca na selva porque ele havia se perdido; quando foi alvejado nas costas e tivemos de operá-lo para retirada do corpo estranho; ou quando, juntos, percorremos e mapeamos toda zona de batalha próxima ao nosso acampamento.

O engraçado é que com o tempo fica muito fácil saber das reações de um cara tão presente assim. E confesso que não levei muito tempo para começar a reconhecer suas atitudes. Sempre de poucas palavras, quando abaixa uma sobrancelha e move uma orelha, é dúvida. Estranhamento e curiosidade significam apenas uma franzida na testa, aí é uma questão de interpretação. Normalmente a curiosidade é seguida de uma mexida nas orelhas, mas não é sempre. Felicidade significa olhos esbugalhados e uma leve “sorrisada”, porque eu não consideraria o sorriso dele um sorriso de tão irrisório. Quando a empolgação é muita parece até que tem Parkinson de tanto que treme e chacoalha. Ainda mais com suas bochechas grandes, estas expressões acabam ficando engraçadas quando as identifico.

Não há exatamente como definir o que esse cara significa pra mim. Não só um amigo, um parceiro, mas também um irmão, um filho. Como já disse, ele é de poucas palavras, e admito que a maior parte de nossas conversas são telepáticas. Mas fazer o que? Quando sento e acendo um cigarro para pensar ele senta ao meu lado e não diz nada. Não precisa dizer. E olha que dizem por aí: gente boa, gente boa... gente mesmo não é boa nada. Bom mesmo é meu fiel escudeiro Sargento.
Rambo

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Gente boa

Eu conheci ele aos 15 anos. Naquela época, quando as pessoas ainda dançavam juntinhas musica lenta nas festas. O nome dele era Carlos Eduardo, mais conhecido como Kadu pela turma. Com 1, 64 de altura, ele até conquistava o coração de algumas menininhas, mas o meu não. Moreno, magrinho e bem chatinho. Tinha algo nele que eu não suportava, sabe quando o santo não bate?! Mas o que mais me intrigava em tudo isso é que quando estávamos falando sobre ele, sempre vinha alguém e mandava, Que Kadu? Ai eu, O mala! Ai a pessoa, Ah que isso, ele é gente boa! Como assim gente boa? Ele era um mala isso sim! Era aquela pessoa que quando te via, já vinha abraçando e dava um beijo no rosto. Só que dar um beijo no rosto para ele era beijar na trave. Ai como eu odiava isso! Ou quando eu estava fazendo a lista da minha festa e vinha a minha melhor amiga e falava: Convidou o Kadu? Ai eu, Qual Kadu? O mala? Ai ela, Ahh que isso ele é tãoooo gente boa. Cara, fala sério? O que é ser gente boa para as pessoas hoje em dia? Todo mundo é gente boa?! Quer dizer todo mundo pode ser, mas o Kadu não! Ele não pode, ele é um chato, que se acha seu best, mesmo te conhecendo a apenas uma hora. Tive que conviver com esse meu “suposto” amigo por muito tempo, quase toda a minha adolescência. Ia ao inglês, ele tava lá. Ia em um churrasco, ele tava lá. Ia nas olimpíadas da MINHA escola, isso mesmo, ele não estudava no mesmo colégio que eu, e ele tava lá! AHHHH! Ele era onipresente, nunca vi uma pessoa estar em todos os lugares ao mesmo tempo! Meu deus, ele me persegue! E quanto mais eu via o Kadu, mas raiva eu tinha dele! Eu não sei o porquê de tanto ódio. Realmente, ele nunca tinha me feito nada. Mas a presença dele me irritava. Não conseguia passar alguns segundos perto dele, porque ele sempre vinha com aquela voz mole de eu sei seduzir. E eu pensava: Não, você não me seduz nem um pouco! Conversava, disfarçava e sai correndo para bem longe. Acho que esse era o maior problema dele, faltava senso. Porque cara, quem não percebe quando uma pessoa atravessa a rua para não falar com você e, mesmo assim, você dá aquele berro do outro lado só para chamar a atenção da pessoa?! A resposta você já imagina?! Sim o Kadu, ele não percebia. Na verdade, ele não tinha percepção de nada. Depois de uns quatro anos disso, desisti! Ele me venceu! Não agüentava mais essa situação de me sentir a única pessoa no mundo que não gostava do Kadu! Resolvi parar de evita-lo e quando menos esperava já conseguia manter um papo de um minuto com ele. Recorde, claro! Comecei a perceber que o problema era meu! Eu que era uma pessoa insensível e não via o quanto legal era o Kadu! Eu que era uma bruxa, uma vaca, uma invejosa! Mas o melhor de tudo isso foi que percebi que a ironia sempre esteve na minha vida: Fala sério neh gente, ele é tãooo gente boa!
Vivianne Medeiros

Gente boa

Nada mais comum nesse mundo, ou em qualquer outro, do que um gente boa.

Difícil dar uma volta no quarteirão sem topar com um legítimo exemplar dessa ordem. Gente boa não quer profundidade, nem tem grandes projetos: ele é o que ele é.

Perdoem, meus amigos, a tautologia, mas gente boa não admite comparações. O que seria o oposto de gente boa? Gente má? Definitivamente não. Atenção! Falta leveza a qualquer concorrente que ouse se apresentar... Gente boa é alguma coisa auto-suficiente, não precisa do outro.

Gente boa não quer nada além do que ele traz: frescor. Gente boa não é juiz, nem réu, nem lobo nem vovozinha. Permitam fazer dele um funâmbulo, que percorre a linha que liga o paradoxo ao nada.

Gente boa pode ser o ladrão da esquina, basta ele devolver o seu documento. Apesar do susto, foi gente boa.

Nenhuma contradição machuca um gente boa, ele requer boa dose delas. Gente boa nunca tem ideologias. Cazuza foi um registro exemplar, quis deixar de sê-lo: fracassou. Nem o maior dos poetas conseguiria livrar-se de tal fardo.

Ninguém: pobre, rico, santo, assassino, escapa do fato de em algum momento ter sido um... gente boa. É isso o que nos justifica.

Gente boa não merece ser escrito, nem dito pessoalmente. Gente boa está sempre em terceira pessoa. Nunca anda conosco.

– Tá vendo aquele sujeito?

– Não.

– Então, ele é muito gente boa.

– Concordo.

A coisa mais parecida com um gente boa que eu já vi foi o ovo da Clarice. Se bem que este carrega um mistério, oculta poderes. O nosso objeto não: gente boa é sempre um legítimo gente boa. Não se pode ser mais ou menos.

Gente boa não precisa de qualidades. É capaz de boas atrocidades. E isso justifica a violência que tantos outros gente boas nos divulgam.

Ser gente boa exige apenas uma condição: que antes seja gente. O meu cachorro é muito gente boa. Porque alienado como todos nós.
Jean Baptiste

Gente boa

“Fulano é bacaninha! Muito gente boa! Muito legal!” Essa é a frase que ela diz sempre que me apresenta alguém que eu não conheço. Ela também é muito gente boa, gente fina. Sempre sorrindo e cantarolando. Sempre conversando e brincando porque “a vida é muito dura e a gente tem que rir e brincar pra aliviar o estresse e esquecer os problemas”.

Como mora longe do trabalho, acorda cedo para chegar cedo, arrumar as coisas e deixar tudo em ordem. “Eu odeio bagunça! Vai que alguém importante chega aqui!? Vai pensar o quê!? Que eu sou uma porca.” E, mesmo sendo uma das primeiras a chegar, sempre sai tarde para não pode deixar de atender ninguém.

O pessoal de lá “se amarra” nela. Não só pelo trabalho que ela faz lá, mas também por sua sinceridade, por seu jeito carinhoso e sua atenção. Conhece todos pelo nome (até os novatos) e sabe o que cada um gosta ou desgosta. Chega silenciosa e discreta. Muitas vezes só percebemos sua passagem quando vemos o pedido em cima da mesa. Às vezes chegamos e o pedido costumeiro já está lá, esperando pela nossa chegada.

“Tá muito difícil conseguir emprego hoje e eu que não vou dar mole”. Por isso, enquanto trabalha ela se mantém séria. Mas lá na salinha onde fica ela pode relaxar: brinca com um, conversa com outra, marca uma saída com a terceira. É lá que ela recebe os colegas para bater um papo, conversar. Lá ela se sente à vontade para falar o que quiser (“mas nunca da vida dos outros”) e para vender Avon, Natura, Hermes, DeMillus... (“pra ter um dinheirinho por fora”)

É daquelas pessoas que saem falando e quando você percebe já sabe tudo sobre a vida dela. Em um mês trabalhando lá, descobri que ela teve um filho quando tinha 19 anos, depois disso casou de novo e teve mais um casal de filhos; já foi traída pelo marido atual, mas continua com ele afinal “ele é pai dos meus filhos”; já teve um amante... e gosta da sogra mais do que do marido. Adora um pagodinho, mas não bebe porque, pelos cálculos dela “com o dinheiro que ia gastar comprando cerveja, eu pago a prestação de alguma coisa pros meus filhos”.

Mas afinal de contas quem é ela? A copeira do meu trabalho, verdadeira “gente boa”.
Mônica Sampaio

Boa gente

- O que você quer da vida?

Levantei a cabeça.

- O que?

Segunda Chance.

- O que você quer da vida?

Pensei, pensei, pensei. Carros, mansões, sucesso, poder, mulheres. Vazio.

- Ah, muita coisa. – respondi.

- Você acaba de perder 10.000 reais!

- O que?!

- Você perdeu.

Então percebi o microfone na mão daquele homem que me indagava sobre os desejos da minha vida. Surgiram duas câmeras erguidas por outros homens de crachá.

- Não foi essa semana, pessoal. Fique de olho aberto, o próximo poderá ser você. Corta!

Levantei e caminha apressadamente até o homem com o microfone.

- Não entendi. O que aconteceu?

- Você não assiste à televisão?

Ele esperou minha resposta, mas eu nada disse.

- Somos do programa que realiza seus desejos. Basta você dizê-lo.

- Qual é o programa?

- Oras... Tenho que ir.

Entraram num carro e partiram com todo equipamento.

Eu realmente perdera a chance de ganhar dez mil reais? Estava apenas sentando num banco de praça lendo o jornal. Então respondo para mim mesmo o que eu devia ter dito:

- Sorte.

Nunca tive sorte na vida, as oportunidades apareciam todo momento, mas para eu alcançá-las era quase impossível. Acredito que tudo começou com meu nascimento. Cesariana, sete meses de gestação apenas, algo deixou de ser formado em mim, talvez, algum gene da esperteza, ou da sorte, ou do sucesso. Nunca ganhei na Lotomania, Lotofácil, nem na raspadinha. Meus cupons de embalagem nunca foram sorteados e, para finalizar, nunca tive o prazer de gritar: Bingo!

Porém, não sou um azarado. Nunca caiu um armário no meu pé, nem cocô de pombo na minha cabeça. Pensando bem sobre esse assunto... existem várias coisas na minha vida que eu desejei e nunca obtive, mesmo com a oportunidade na minha frente. Na escola, por exemplo, nunca consegui ser o orador da turma, sempre tinha um cara que falava melhor. No time de futebol, a mesma coisa. Eu jogava bem, mas a braçadeira de capitão nunca chegou perto de mim. Eu era esforçado, tirava boas notas, mas nunca as melhores da turma. Se me recordo bem, nunca ganhei um sorteio.

Na época do vestibular a mesma tortura. Aqueles malditos centésimos e milésimos me afastaram da minha desejada vaga em Comunicação Social. Eu era o primeiro na fila de espera da reclassificação e continuo lá até hoje, porque nenhum infeliz desistiu e abriu uma vaguinha para mim. Então, segui a carreira das Letras, esta eu conseguir passar sem depender da sorte. No mercado de trabalho, então nem se fala, foram análises de currículo, dinâmicas, entrevistas e mais entrevistas. Falo três línguas, estudei numa das melhores universidades do país, mas tudo que eu consigo parece medíocre comparado aos meus amigos. Se, por acaso, eram apenas dois candidatos, eu e outra pessoa, certamente a outra pessoas ocuparia a vaga.

Após o episódio na praça me convenci de que eu não podia contar com a sorte para nada e as oportunidades não significam nada além de chances perdidas. Talvez eu seja uma pessoa pessimista e a sorte não gosta de pessoas assim. Passei uma semana pensando no ocorrido me culpando pela estupidez e etc. Procurei o tal programa na televisão e não achei nada parecido. Minha namorada e meus amigos tão pouco sabiam. Claro que não lhes contei sobre o evento na praça. As minhas estupidez e burrices eu guardo para mim.

O destino gosta de brincar com a gente. Não foi que eu encontrei nesta bendita semana de reflexão, com o tal cara do microfone num restaurante. Primeiro duvidei. Depois decidi confiar na minha memória. Era ele. Não pude me controlar, tive que ir até ele falar alguma coisa. Ele era o culpado de eu estar questionando todo minha vida.

- Com licença, senhor.

- Sim?

- Gostaria de conversar com o senhor.

- Estou a almoçar. Mas digas o que queres.

- Posso me sentar?

- Quem és tu?

- Eu quero saber quem é você.

- Assim fica difícil.

- Sou o cara que perdeu o prêmio semana passada.

- Ah, sim. Isso, às vezes, acontece.

- Mas acontece comigo sempre. A chance está bem na minha frente e eu a perco.

- Você é uma pessoa pessimista?

- Talvez.

- Você faria alguma trapaça para conseguir essas oportunidades? Mentiria ou omitiria informações relevantes?

- Não sei. Acho que não.

- Então, Você é boa gente.

- Como assim?

- Você tem uma namorada?

- Sim. Cecília.

- O senhor diria que ela é bonita?

- Claro!

- Linda e estonteante?

- Hum... ela é bonita, mas...

- Mas existem outras bem mais bonitas e você as conhece. Então você é boa gente.

- Não entendo sua lógica?

- Já traiu sua namorada?

- Não! Aonde você quer chegar?

- Foi você que me disse que não consegue nada na vida. Onde você mora?

- Tijuca.

- Qual foi a coisa mais importante da sua vida?

- Viajei com para os Estados Unidos há alguns anos.

- Boa Gente!

- Que merda ficar me chamando de Boa Gente!

- Você não mora no subúrbio e nem na Zona Sul. Você não namora Luana Piovani, mas também não está a misere. Seu trabalho não é braçal, porém não é um líder. Você nunca construiu algo grandioso, mas tem alegria.

- Não entendo. Quer dizer que sou gente boa porque não sou um homem poderoso e nem um completo fudido?

- É assim que a gente define na mídia, na verdade, na vida. Você não vai aparecer na mídia porque não fará nada de grandioso. Por outro, não fará nada muito besta. O grande empresário e o assaltante aparecem. Você não.

- Minha vida é nada?

- Para você não. Nem para os que estão próximos de você. Afinal, você é boa gente.

- Que raios de definição maldita essa!

- Você não será invejado e, portanto, não será odiado. Mas também, não será adorado. Espere, ao menos, ser esquecido.

- Que versão triste da minha vida.

- Não tem nada triste na minha lógica. Você é o número 8.

- Oito?

- Aquele que sabe um pouco mais que os outros. Mas não é tão competente para chegar a nove, dez....

- Você nem me conhece.

- ...aquele que todo mundo cumprimenta na portaria, mas esquece de convidar para festa.

- Chega!

- Você é a média. Grande média da população mundial...

- Não quero mais saber.

- Então o que queria?

- O programa realmente existe?

- Claro que existe.

- Quero uma segunda chance.

- A lógica do programa é o inesperado. Não temos acordos. Procuramos alguém na rua com a cara do programa, o interpelamos e damos o que a pessoa desejou, através de uma quantia em dinheiro. É apenas um quadro.

- Meio besta, não?

- O público gosta.

- Qual o nome do programa?

- Boa Gente.

Me levantei e fui para casa determinado a terminar o meu romance esquecido há anos. Agora ele vai virar best-seller.
Raposa do Pequeno Príncipe

Gente boa

É interessante ver o como virou “modinha” as pessoas escreverem e demonstrarem sua indignação sobre a era de banalização do amor que estamos vivendo.

Quase sempre recebo um e-mail sobre o assunto, escuto conversas nas ruas sem contar dos inúmeros convites que recebo para participar de comunidades do Orkut com o título “Eu te amo não é bom dia”, que por sinal é a frase favorita dos mais engajados na luta contra essa banalização.

Inicialmente, gostaria de lembrar que é óbvio que “eu te amo” não é “bom dia”. Caso contrário, só amaríamos as pessoas pela manhã, quando na verdade sabemos que ainda costuma-se amar mais a noite.

Calma gente, eu sei que no comentário acima eu levei a frase muito ao pé da letra. Sei muito bem que ela é uma metáfora sobre fato de ultimamente as pessoas falarem que amam qualquer um, “quase” da mesma forma que, dão “bom dia” para inúmeras pessoas desconhecidas.

Gostaria de ressaltar que é “quase da mesma forma” uma vez que nunca vi nenhuma pessoa sã sair dizendo “eu te amo” para o padeiro, o leiteiro, o porteiro e o balconista da farmácia da mesma forma que educadamente dizem “bom dia” para essas figuras do cotidiano. Ou seja, acredito que você pode até duvidar se o que a pessoa sente é amor ou não, mas pode ter certeza que existe um mínimo de admiração, da arte da pessoa que sente pele pessoa merecedora de tamanho afeto.

Um exemplo disso é amor que fãs sentem por seus ídolos. Muitas vezes as fãs nunca viram seu ídolo pessoalmente, nunca conversaram, mas conhecem sua história de vida, admiram sua personalidade e por isso gritam sem nenhum pudor seu sentimento de amor para todo mundo.

Não sou defensora de nenhum movimento ao estilo “vamos amar desconhecidos”; simplesmente eu prefiro não julgar se as pessoas realmente amam ou estão falando por falar. Acho muito complicado medir a intensidade do sentimento alheio e por isso, prefiro não condenar ninguém.

Além disso, não vejo tanto problema ao ver palavras de amor sendo ditas ao léu. Levando em consideração o raciocínio do jogo do contente, antes palavras de amor do que palavras de ódio.O que importa é ver ela sendo dita em um bom sentido, para pessoas que de alguma forma merecem.

Porém, existem outras expressões de carinho, palavras que deveriam ser utilizadas apenas para pessoas que gostamos (independente da intensidade) sendo usadas como eufemismos e/ou desculpas, e isso muito me preocupa.

Um grande exemplo disso é um dos diálogos mais utilizado nas boates:


Cena 1 : Homem acha mulher bonita e tenta lhe dar um beijo.

Cena 2: Mulher foge do beijo.

(Homem) - Você não achou me achou bonito?

(Mulher) - Ah.. você é gente boa mas....



Na situação acima, a mulher nunca viu o cara e as únicas palavras que escutou dele foram “Você não achou me achou bonito?”. Sendo assim, eu me pergunto sobre quais argumentos ela pode afirmar que ele é gente boa?

É nítido que ela só falou isso, pois não teve a coragem de dizer que ele é feio ou então porque precisava de uma desculpa para não beijá-lo. Ou seja, ou utilizou como um pretexto ou como um eufemismo.

Antigamente, “gente boa” poderia ser tanto aquela pessoa que você conhece há anos, quanto aquela que você conhece há um dia, mas que tem um papo bom, bom humor e que te cativou.Dava orgulho ser tachada como “gente boa”.

Já, hoje em dia, quando me chamam de gente boa já suspeito que ou estão me chamando de feia, ou então estão fazendo um comentário do tipo: “até que ela é gente boa...”.Deu para perceber que essa mudança se sentido faz a gente começar a duvidar dos melhores dos elogios ?

Longe de mim, querer fazer um manifesto sobre a banalização do “gente boa”,até porquê em momento algum acho que o problema que ocorre com ele seja esse.

Ele de fato esta sendo utilizado de forma trivial, mas como falei acima não vejo problema nenhum nisso. É uma qualidade boa sendo disseminada. Quem dera todas as pessoas do mundo fossem “gente boa”.

O grade problema, na minha opinião, é ver uma característica tão bonita sendo utilizada de forma tão negativa.
Vento

Gente boa

Homem tem que ser bonito ou gente boa? O questionamento filosófico de evidente profundidade não poderia ter saído de outro lugar senão do site da revista Capricho, o Alcorão do mundo teen. Melhor do que a pergunta capaz de mudar o rumo da humanidade e definir, por exemplo, o futuro de Manuel Zelaya em Honduras, são as respostas das gurus-semideusas identificadas por “Meninas da República Capricho”.

Apesar da clara irrelevância do tema, aposto que estão ansiosos para ver o que pensam as Meninas da República Capricho, inquestionáveis doutoras no assunto! Vamos lá!

Mary Anjos é ambiciosa: “Os dois!”, responde baseada na teoria do Tudo é Possível. E complementa com a vertente do Valor dos Valores. “Mas o caracter(sic) importa bem mais que a beleza”. Confesso que não entendi a presença do “c” antes do t. Deve ser alguma variação linguística ou algum código que minha idade avançada não me permite compreender.

Vamos à próxima acadêmica. Isadutra é a principal estudiosa da Convergência de Qualidades. Em sua tese de mestrado na Universidade Federal Fluminense, ela concluiu que beleza e “caracter” podem habitar o mesmo ser. Além disso, rapazes que não unem as duas virtudes em um só corpo estão fadados ao insucesso com o público feminino! Com singular brilhantismo, ela justifica que uma coisa perde o valor sem a outra:

“Os dois, né? Não adianta ter um rostinho bonitinho e num ter um papo legal, né? E pow, aquele carinha que é super gente boa, mas é feio também não dá pra levar, né!”

Já Caamila (com dois “as” mesmo), baseia-se no estilo Parnasiano. Em sua tese de pós-doutorado, ela prova que o culto à forma em detrimento ao conteúdo também se aplica ao universo masculino. A membro do Conselho Capricho testemunha que a conjuntura mundial a fez mudar de atitude quanto à escolha do homem:

“Antigamente eu escolhia a pessoa por ser gente boa, mas infelizmente aparência conta muito hoje em dia, né. Desencanei então. Agora, é só pegar um bonitinho e aí está tudo certo!”

Vitizanotto e Stéfanie trabalham juntas na linha da Relatividade. Após cinco anos em Sorbonne, na França, elas concluíram que a decisão entre "bonito e gente boa" é definida a partir das intenções (más ou não) da mulher. Resumindo a tese de 300 páginas: se for para ficar apenas uma noite, é obrigatório que o cara seja bonito, mas se há pretensões de um relacionamento duradouro e sólido, ele tem que ter conteúdo e, principalmente, ser gente boa.

“À primeira vista, claro que tem que ser bonito. Mas pra ter algo mais sério com o cara, beleza não é o ponto mais importante. O menino tem que ser gente boa. Nem precisa ser bonito!”, lembra Vitizanotto.

A única da república a defender pensamento diferente foi AnneLayse. Ela estpa no terceiro ano do curso técnico de “Como fazer a sociedade aceitar um namorado feio”. Fontes revelam que ela é conhecida como a hipócrita da academia.

“Gente Boaa sempreeee. Não me importo com beleza exterior”

A análise mais coerente, ao meu ver, vem da Pritt. Ela demonstrou mais habilidade do que as companheiras e foi a única capaz de resolver a problemática. A principal linha da moça de apenas 16 anos é o estudo do francês Antoine Lavoisier, que, na Lei da Conservação das Massas, mostra que “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

“Não dá pra ter os dois? Cara, prefiro bonito então! Aí eu deixo ele legal. Porque pegar feio é triste demais, hein?

Depois dessa resposta aposto que a próxima enquete da revista Capricho vai ser “Como deixar aquele homem feio legal?” Meninas, comecem a estudar e preparem suas colocações. A bibliografia completa está em www.capricho.abril.com.br.
Teo Versiani

domingo, 27 de setembro de 2009

Gente boa

Mário se mudou há 10 anos. Chegou vestido de maneira simples; jeans surrado e camiseta herdada da campanha política de 1997. Seus cadarços estavam desamarrados e seus pés eram arrastados em um compasso ritmado e monótono. Deixava tudo para trás e iniciava vida nova; seu tudo era pouco, mas ainda assim o desapego provocava estranheza. Não mais do que os olhares da vizinhança: intimidantes, desconfiados e apreensivos com a chegada do forasteiro. Mário escondeu o rosto e abaixou a aba do boné.

As paredes de concreto áspero da construção escondiam um microcosmo cujas engrenagens operavam de maneira curiosa. As janelas dos quartos emolduravam o pátio de grama maltratada, alguns bancos e uma única trave de futebol. Havia um certo equilíbrio harmônico, interrompido por freqüentes discussões entre desafetos. Durante os confrontos de seus vizinhos de porta, Mário preferia manter-se imparcial. Apoiava-se no peitoril da janela, dava três voltas no quarto e cantarolava um samba antigo para abafar os insultos e ameaças vazias. Sua resolução máxima era ser invisível.

Levava uma vida regrada, sem excessos de álcool, drogas, alegria e demais entorpecentes. Era fiel aos seus horários. Levantava, impreterivelmente, às 7h, vestia as roupas limpas recém-chegadas da lavanderia e ia trabalhar. Mário vivia de pequenos serviços de carpintaria. A remuneração era ridícula e insultuosa para a maioria dos servidores, mas ele gostava de ter uma razão para se levantar e vestir suas calças.

Logo após se mudar, conheceu Jorge e Pedro, com quem partilhava o interesse por baralho e cigarros. Passavam tempo sentados nos bancos, assistindo partidas de futebol de uma só trave. Jorge era um sujeito alto, de cabelos crespos. Havia uma seriedade solene em seus olhos pretos vazios. Carregava a foto de uma mocinha pálida no bolso da camisa; Mário a havia batizado secretamente de “Branca”. Em suas reuniões diárias, Jorge nunca mencionava Branca e Mário também nunca perguntava. Mesmo em 10 anos de convivência, não tinha intimidade para tal. Seus assuntos se resumiam a histórias despretensiosas do passado, esportes, fumo e mulheres. Mas não aquelas cujas fotos são carregadas nas carteiras; só as que exibiam seus dotes em capas de revistas. Já Pedro, negro de sorriso amarelo, gostava de vangloriar-se por seus trambiques e falcatruas. Era o mais velho dos três e morava lá há Deus-sabe-quanto-tempo.

Almoçavam juntos a comida de Dona Glória e Dona Lígia. As senhoras e seus ajudantes cozinhavam para uma boa quantidade de pessoas e não tinham muito tempo para preocupar-se com qualidade e variedade. A comida quase sempre era uma mistura irreconhecível de arroz, feijão e uma carne qualquer, batizada carinhosamente de “grude”. Mário devorava com gosto. Jorge mexia o garfo relutante. Pedro lambia o prato. Os três despediam-se com um aceno cúmplice e voltavam para seus quartos.

À noite, Mário jantava as sobras do almoço na mesma mesa. Fez isso durante 10 anos e, aquele dia, não era diferente. Um sinal tocou. Todos os homens ficaram de pé em um impulso coletivo. Mário olhou em volta, suspirou e balançou a cabeça pesadamente ao notar os homens vestidos de azul que orquestravam o grupo. Empurrou seu prato e lamentou o arroz intocado: gostaria de ter mais tempo. Sentiu uma pesada mão nas costas e levantou-se também. Cabeça baixa, semblante resignado. Foi escoltado até sua cela pelo guarda que lhe disse “boa noite” e fechou as grades.


Lúcia

Gente boa

Todos os Pedros que eu conheço são inteligentes e educadas. Os Gabriéis costumam ser confiáveis. Já os Rafaéis geralmente são divertidos. Quando me apresentam a uma pessoa pergunto logo o nome para tentar descrever seu perfil. Pode parecer neurose, mas para mim é como se o nome já definisse se eu vou me dar bem com a pessoa ou não. Costumo ter boas relações com Leandros e Caios. Dos Ricardos não gosto nem de chegar perto.

Certa vez conheci um Augusto, e aí está um nome que eu não sabia definir as suas características. Talvez porque esse não seja mais um nome popular, era comum na época da minha mãe.

Augusto: do latim dignidade, majestática, sagrado, sublime. Este foi o significado que eu encontrei na internet, mas na verdade, fiquei ainda mais confusa, afinal como seria uma pessoa sublime? Aquilo me deixava muito intrigada. Era a primeira vez que eu não conseguia traçar o perfil de uma pessoa pelo nome.

O jeito era me aproximar e ver o que acontecia. O Augusto fazia aulas de espanhol comigo e era o único homem, em uma sala com mais dez mulheres. Logo na segunda aula, quando a professora perguntou quem podia distribuir as folhas com um exercício, Augusto levantou os braços, como um fã da Cláudia Leitte durante um show, e gritou que faria aquilo com muito prazer. Prazer? Como alguém pode ter tanto prazer em distribuir um papel?

Os dias passavam e Augusto continuava indecifrável. Ele carregava as pastas de todas as meninas, corria para abrir a porta para a professora, sempre queria ler os textos da aula e até ajuda no dever de casa ele oferecia, mesmo sem conhecer ninguém direito. Quando você pensava: preciso de uma borracha! Lá estava Augusto com uma na mão para te oferecer.

Augusto era a pessoa mais prestativa que eu havia conhecido na vida. E aquilo em alguns momentos era chato. Às vezes você não precisava e não queria absolutamente nada, mas ele te oferecia um chiclete, perguntava o que você tinha comido no almoço.

Depois de um semestre tentando encontrar uma característica para o nome Augusto, cheguei a uma conclusão. Como não havia pensado nisso antes? Augusto era simplesmente “gente boa”. Todo mundo já conheceu pelo menos uma pessoa “gente boa” na vida. Vou explicar a expressão, porque muita gente pode não estar entendendo o que eu quero dizer com ela. “Gente boa” é aquela pessoa que não é sua amiga, às vezes nem sua colega, mas é prestativa, educada e um pouco chata. Augusto era exatamente assim. Ainda não sei se gosto das pessoas com esta característica.


Mel