“Não precisava dar um tiro na cabeça dele”. Todos devem ter ficado sabendo do assalto que aconteceu na Tijuca, na tarde da última sexta-feira. Um homem fez uma refém e ameaçou explodir uma granada. A polícia, para impedir um desastre, atirou na cabeça do assaltante. A frase que abre a crônica foi dita pela irmã do rapaz, que se chamava Sérgio Pereira Pinto Júnior. Sim, ele tinha nome!
Eu estava decidido a ignorar os comentários a respeito do acontecimento e, até mesmo, a me retirar das discussões – o que, para mim, é uma tarefa realmente complicada. Antes, procurei abstrair as considerações sobre a morte de Sérgio (decidi chamá-lo por seu nome, não por “assaltante”, “criminoso” ou algo do tipo). Bem, como ia dizendo, as considerações sobre sua morte estavam sendo feitas em tempo real dentro de minha casa. Meus pais e irmãos comentando, ou melhor, comemorando a ação da polícia. Eu evitei passar pela sala para que ninguém pedisse minha opinião, pois ela, invariavelmente, gera polêmica. E me faltava paciência para discutir naquele momento. Aliás, faz tempo que me falta paciência para debates do tipo.
Estava conseguindo levar um dia calmo, livre de problemas, até que esbarrei com dois conhecidos na rua. Eles comentavam, com fervor, que a cena do boné de Sérgio voando no momento do tiro havia sido uma das mais bonitas a que haviam assistido na vida. Confesso que tive espamos musculares na hora. Foi necessária uma altíssima dose de autocontrole para não começar a esbravejar o que penso com considerável dose de estupidez. Obtive sucesso e consegui ficar quieto. Até agora, pelo menos, quando resolvi escrever para liberar minha implicância com grande parte da sociedade. Às vezes, um pouco de misantropia faz bem.
Só que a minha misantropia é, ou, pelo menos, tenta ser democrática, ao contrário da que manifesta a classe média brasileira, da qual faço parte. Existe um maniqueísmo quase doentio em nossa sociedade, e é ele quem me causa profunda irritação. É preciso encontrar um inimigo. No nosso caso, o inimigo é o tráfico de drogas e tudo o que dele surge como conseqüência. É comum ver a mídia e as pessoas falando em “gente de bem”. Quem é de bem trabalha, não usa drogas, não rouba e não trafica, além de possuir alguns outros predicados. E quem não é de bem é o quê? Não precisa muita esperteza para concluir que a criminalidade e a violência urbana sejam resultado principalmente de uma forte e covarde desigualdade social. Não se trata de defender a delinqüência, mas de entender a razão pela qual ela existe. E de não naturalizar o bandido como um inimigo a ser combatido e exterminado. Porque o inimigo não é a violência que começa basicamente nas comunidades pobres. O inimigo é a violência da não-educação, da indiferença e da falta de emprego. O inimigo é uma sociedade estruturada de um jeito, digamos, torto, que jamais poderá “dar certo”.
E então o leitor me pergunta, com razão, o que fazer com a criminalidade, como punir, enfim como resolver o problema. E eu respondo categoricamente que não faço a menor idéia. Se nem Foucault, que concluiu que o Sistema Penal, tal qual ele é, jamais irá funcionar, eu, que nem a graduação concluí ainda, não tenho nada a sugerir. Só não acredito que haja uma linha divisória entre “gente boa” e “gente má”. E não consigo entender como uma pessoa que acredita que esta divisão exista e que se considere no campo da “gente boa” tenha um acesso de alegria assistindo à decolagem do boné de um homem que acabou de levar um tiro na cabeça. Não sei se a polícia teria outra solução. Talvez atirar fosse a única alternativa, apesar de discordar que houvesse necessidade de matar. De qualquer forma, não me sinto vingado ao ver um bandido, no caso, o Sérgio, sendo morto. É tão ruim quanto teria sido vê-lo explodir a granada. Aproveito para lembrá-lo, leitor: Sérgio também era um ser humano.
Quando tenho meus momentos de misantropia, ela se dirige a todos, sem exceção, com o perdão da redundância. Recuso-me a detestar uma classe em especial, pois isso seria de uma atitude de requinte quase sádico. Mais sádico ainda quando o pano de fundo é Brasil, país onde, historicamente, a delinqüência resulta das péssimas condições de existência. Foi assim nas senzalas, foi assim no cangaço e é assim que é nos morros e subúrbios cariocas. Mas a gente boa, “de bem”, continua sentindo êxtase vendo os que ela considera “de mal” sendo exterminados. Acredito que seja mais fácil assim: a existência se torna confortável se naturalizamos uma parte que desanda da sociedade, seja lá por qual motivo, como algo a ser combatido e erradicado.
Perdoem a acidez. É que o boné de Sérgio Pereira Pinto Júnior me fez lembrar o boné de Pedro Bala, o capitão da areia de Jorge Amado. E minha misantropia se acentua quando constata que, 72 anos mais tarde, o drama ainda é exatamente o mesmo, assim como a nossa sociedade. Novamente, perdoem a acidez.
Bertholdo
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