Já devia passar das quatro da manhã. Perdera a noção do tempo olhando a rua. Do lado de fora da janela da sala, o único movimento que se via era da garoa serena, último suspiro da tempestade da noite anterior. Talvez tenha despertado com um trovão, ou quem sabe o vento forte tenha batido a janela. É, lembrava-se vagamente de ter ouvido um baque. Não tinha certeza. O mais provável é que o culpado tenha sido o marido. Enquanto ela se remexia na cama, ele permanecia imóvel. Barriga para cima, boca entreaberta, braços e pernas avançando sobre a linha invisível que delimitava o espaço de cada um na cama. É, caro leitor, porque existe um limite. Se você é jovem, principalmente se é solteiro, dificilmente entenderá o que isso significa. Quando se sustenta um casamento por 25 anos, “dormir de conchinha” se torna cada vez menos atraente. Aos poucos, a demonstração de carinho se reduz a um abraço rápido, depois a um beijo na testa, um afago no rosto. Eles já estavam na fase de só dizer boa noite. Na sala, os roncos dele pareciam tão altos quanto no quarto. Ecoavam no corredor, orquestrando uma sinfonia perturbadora que, cada vez mais, a incomodava.
Mas pouco lhe interessava ficar questionando os motivos que a fizeram levantar. Sabia que o desconforto que sentia em nada tinha a ver com a pessoa deitada no cômodo ao lado. Na verdade, a única certeza que tinha é que não tinha certeza alguma. Sequer se chegara a dormir. O mal-estar a acompanhava desde o momento em que fora se deitar. Não sabia o que era. Ali, debruçada na janela, tentava pensar em amenidades. Repassou mentalmente seus compromissos. O que precisava fazer naquele dia? Tinha alguma coisa a fazer... Ah, sim! Tinha que sair. Ir ao banco pagar umas contas. Sim, era isso. Meu Deus, é o melhor que consegue imaginar para se distrair?, pensou. Deixar o emprego para cuidar da casa definitivamente não tinha sido uma boa idéia. Os poucos meses de marasmo – se é que se pode chamar assim – em nada pareciam com as férias prolongadas que havia planejado. Debochou de si mesma. Baixou o rosto, movendo o pescoço de um lado para o outro, tentado relaxar, deixar de lado a estranha sensação que a dominava. Os cabelos cobriam-lhe a face. Enquanto ainda tentava buscar o sono já perdido, seus olhos se prenderam a um detalhe. Apoiadas no peitoril da janela, suas mãos lhe chamaram a atenção. As unhas estavam feitas, a aliança no anelar esquerdo brilhava. Mas havia algo diferente. Ergueu os braços na altura do rosto, as palmas viradas para frente. Dobrou e esticou os dedos uma, duas, três vezes. Não havia como negar. As mãos – malditas delatoras! – lhe faziam lembrar uma verdade que há muito tentava ignorar. Estava envelhecendo... Não que estivesse velha. Não, definitivamente, não! Era uma mulher conservada, como as amigas sempre faziam questão de lembrar. A primeira vista, era impossível atribuir-lhe os 50 anos de estrada que já carregava. Até dois dias atrás, podia desconversar com o velho “Estou com quarenta e poucos”. Agora... Não mais. Não que isso fosse uma grande mudança...
Então, o que estava errado? Quer dizer, um ano a mais ou a menos não faz diferença, certo? Ainda tentava se convencer quando sentiu o peito se comprimir, uma pressão singular. Correu para o banheiro. As mãos seguraram urgentes as laterais da pia. Olhou-se no espelho. Respirou aliviada ao ver sua imagem refletida. Ainda era ela. Passou a mão nos cabelos, revirando os olhos. Sentia-se uma completa idiota. Mas o que esperava ver, afinal? Respirou fundo. Esforçava-se para controlar a respiração, que insistia em seguir o ritmo dos pensamentos que se atropelavam. Tornou a focar o rosto no espelho. Procurou sinais, marcas. Definitivamente os cremes anti-age cumpriam rigorosamente seu papel. Em volta dos olhos castanhos, só havia as olheiras, que denunciavam nada mais do que uma noite mal dormida. Os cabelos, bem, esses sim a incomodavam. Os indesejados fios brancos foram os primeiros a chegar. Não gostava de pintá-los – perdera para sempre o tom dourado –, mas que alternativa tinha? Estavam menos sedosos, levemente mais ralos. Nada assustador. É claro que há muitas formas de afastar os anos hoje, mas, honestamente, não gostava da idéia de ter que tomar uma decisão mais radical.
Lavou o rosto e caminhou pelo corredor. Não entrou no quarto, ainda não estava à vontade. Voltou para a janela. Já não chovia. O céu assumira um tom mais claro. A brisa leve trazia o cheiro da terra molhada, da novidade. Sempre gostara de ver o amanhecer, sentir a gostosa sensação da aurora que vem embalada no ar. Sempre fazia com que se sentisse revigorada. Mas não hoje. Tentava buscar respostas que justificassem seu comportamento incomum. Nunca fora uma pessoa preocupada com a idade. Pelo menos não enquanto era jovem. Mas agora, as coisas pareciam diferentes. Percebeu que o problema era maior. Não se tratava do tempo passado, mas sim do tempo que ela agora tinha certeza de ter perdido. O casamento estava desgastado. Os roncos irritantes eram a prova disto. No começo, ele não tinha estes problemas – ou será que tinha? Não se lembrava, mas também não era importante. Ele, assim como ela, também mudara. Estava menos carinhoso, menos presente. A cada dia parecia se preocupar menos com ela. Há alguns anos ela havia sugerido que tivessem outro filho. Não que a filha, agora já crescida, não fosse uma benção, uma alegria contagiante quando estava em casa. Mas ela tinha a própria vida, os próprios afazeres. Talvez outra criança tivesse sido capaz de trazer de volta o brilho que o marido, aos poucos, deixara escapar. Mas ele não quis. Iniciou o discurso habitual que, basicamente, se resumia à dificuldade do mundo de hoje, às despesas, à falta de tempo dos dois. Talvez a saída do emprego tenha sido a última tentativa de convencê-lo, provar que poderiam adaptar-se novamente à rotina de pais. Não funcionou.
A verdade é que estava cansada da própria vida. Sentia que, no final, passava em branco. Todos os planos e metas que traçara tinham sido concretizados, mas agora não pareciam mais do que pedaços disformes de uma existência fragmentada e sem grande sentido. O que deixaria para trás, afinal? O que tinha feito? O desespero a tomou completamente. Torcia as mãos em ritmo acelerado. A pressão estalava as juntas. Levou os dedos à fonte, apertou os olhos, seguiu com a ponta do indicador a linha dos lábios carnudos, alisou os cabelos, pressionou a nuca e, por fim, chorou. Chorou como não chorava há muito tempo. Durante alguns segundos, alguns minutos. Não sabia ao certo. Deixou-se levar. Cada lágrima descia pelo canto do olho carregando consigo um pedaço da dor que, enfim, transbordava.
O toque no ombro trouxe-a de volta à realidade mais depressa do que gostaria. Ficara tão concentrada em seus próprios questionamentos que não percebera os passos lentos do marido até ela. Virou-se assustada. Sentia-se tão só que, por um momento, esquecera-se dele. A vista estava embaçada, embora tentasse inutilmente limpar as lágrimas que ainda escorriam. Mal distinguia o rosto dele, mas por uma estranha razão, sentia que isso em nada tinha a ver com as lágrimas. Ele nada entendeu. Não sabia o que perguntar, o que dizer. Não sabia se havia meios de consolá-la. Na ausência de palavras, seguiu o que seus instintos mais adormecidos lhe ordenaram. Abraçou-a. A reação inicial dela foi de choque. Os braços em torno de si pareciam estranhos, desconhecidos. Contudo, lentamente, aconchegou-se. E foi naquele abraço apertado, na respiração lenta nos cabelos e no mais completo silêncio que ela encontrou o que procurara desde o início da noite. Ali, aninhada, em segurança, tornou a chorar. Ele nada disse, apenas a confortou. Ficaram em pé, unidos e imóveis por um instante que pareceu aos dois uma eternidade. Uma eternidade que, de bom grado, estavam dispostos a prolongar. Quando finalmente se olharam, a expressão de ambos era serena. Ele não demonstrava dúvida ou espanto, mas uma tranquilidade envolvente. O rosto dela brilhava. Não por causa das lágrimas derramadas, mas pela inusitada certeza que possuía. Não estava sozinha. Existia.
Ainda juntos, caminharam de volta para o quarto. O sol já aparecia por entre as nuvens, banhando as paredes da sala com seus primeiros raios. Eles não se importavam. Deitaram-se na cama abraçados. As testas coladas, pontas do nariz se tocando, as mãos entrelaçadas, os olhos pesados, mas ainda trocando confidências silenciosas.
Um som tomou a casa. O relógio avisava severo que era hora de levantar.
Sorriram.
E, sonolentos, adormeceram.
Mas pouco lhe interessava ficar questionando os motivos que a fizeram levantar. Sabia que o desconforto que sentia em nada tinha a ver com a pessoa deitada no cômodo ao lado. Na verdade, a única certeza que tinha é que não tinha certeza alguma. Sequer se chegara a dormir. O mal-estar a acompanhava desde o momento em que fora se deitar. Não sabia o que era. Ali, debruçada na janela, tentava pensar em amenidades. Repassou mentalmente seus compromissos. O que precisava fazer naquele dia? Tinha alguma coisa a fazer... Ah, sim! Tinha que sair. Ir ao banco pagar umas contas. Sim, era isso. Meu Deus, é o melhor que consegue imaginar para se distrair?, pensou. Deixar o emprego para cuidar da casa definitivamente não tinha sido uma boa idéia. Os poucos meses de marasmo – se é que se pode chamar assim – em nada pareciam com as férias prolongadas que havia planejado. Debochou de si mesma. Baixou o rosto, movendo o pescoço de um lado para o outro, tentado relaxar, deixar de lado a estranha sensação que a dominava. Os cabelos cobriam-lhe a face. Enquanto ainda tentava buscar o sono já perdido, seus olhos se prenderam a um detalhe. Apoiadas no peitoril da janela, suas mãos lhe chamaram a atenção. As unhas estavam feitas, a aliança no anelar esquerdo brilhava. Mas havia algo diferente. Ergueu os braços na altura do rosto, as palmas viradas para frente. Dobrou e esticou os dedos uma, duas, três vezes. Não havia como negar. As mãos – malditas delatoras! – lhe faziam lembrar uma verdade que há muito tentava ignorar. Estava envelhecendo... Não que estivesse velha. Não, definitivamente, não! Era uma mulher conservada, como as amigas sempre faziam questão de lembrar. A primeira vista, era impossível atribuir-lhe os 50 anos de estrada que já carregava. Até dois dias atrás, podia desconversar com o velho “Estou com quarenta e poucos”. Agora... Não mais. Não que isso fosse uma grande mudança...
Então, o que estava errado? Quer dizer, um ano a mais ou a menos não faz diferença, certo? Ainda tentava se convencer quando sentiu o peito se comprimir, uma pressão singular. Correu para o banheiro. As mãos seguraram urgentes as laterais da pia. Olhou-se no espelho. Respirou aliviada ao ver sua imagem refletida. Ainda era ela. Passou a mão nos cabelos, revirando os olhos. Sentia-se uma completa idiota. Mas o que esperava ver, afinal? Respirou fundo. Esforçava-se para controlar a respiração, que insistia em seguir o ritmo dos pensamentos que se atropelavam. Tornou a focar o rosto no espelho. Procurou sinais, marcas. Definitivamente os cremes anti-age cumpriam rigorosamente seu papel. Em volta dos olhos castanhos, só havia as olheiras, que denunciavam nada mais do que uma noite mal dormida. Os cabelos, bem, esses sim a incomodavam. Os indesejados fios brancos foram os primeiros a chegar. Não gostava de pintá-los – perdera para sempre o tom dourado –, mas que alternativa tinha? Estavam menos sedosos, levemente mais ralos. Nada assustador. É claro que há muitas formas de afastar os anos hoje, mas, honestamente, não gostava da idéia de ter que tomar uma decisão mais radical.
Lavou o rosto e caminhou pelo corredor. Não entrou no quarto, ainda não estava à vontade. Voltou para a janela. Já não chovia. O céu assumira um tom mais claro. A brisa leve trazia o cheiro da terra molhada, da novidade. Sempre gostara de ver o amanhecer, sentir a gostosa sensação da aurora que vem embalada no ar. Sempre fazia com que se sentisse revigorada. Mas não hoje. Tentava buscar respostas que justificassem seu comportamento incomum. Nunca fora uma pessoa preocupada com a idade. Pelo menos não enquanto era jovem. Mas agora, as coisas pareciam diferentes. Percebeu que o problema era maior. Não se tratava do tempo passado, mas sim do tempo que ela agora tinha certeza de ter perdido. O casamento estava desgastado. Os roncos irritantes eram a prova disto. No começo, ele não tinha estes problemas – ou será que tinha? Não se lembrava, mas também não era importante. Ele, assim como ela, também mudara. Estava menos carinhoso, menos presente. A cada dia parecia se preocupar menos com ela. Há alguns anos ela havia sugerido que tivessem outro filho. Não que a filha, agora já crescida, não fosse uma benção, uma alegria contagiante quando estava em casa. Mas ela tinha a própria vida, os próprios afazeres. Talvez outra criança tivesse sido capaz de trazer de volta o brilho que o marido, aos poucos, deixara escapar. Mas ele não quis. Iniciou o discurso habitual que, basicamente, se resumia à dificuldade do mundo de hoje, às despesas, à falta de tempo dos dois. Talvez a saída do emprego tenha sido a última tentativa de convencê-lo, provar que poderiam adaptar-se novamente à rotina de pais. Não funcionou.
A verdade é que estava cansada da própria vida. Sentia que, no final, passava em branco. Todos os planos e metas que traçara tinham sido concretizados, mas agora não pareciam mais do que pedaços disformes de uma existência fragmentada e sem grande sentido. O que deixaria para trás, afinal? O que tinha feito? O desespero a tomou completamente. Torcia as mãos em ritmo acelerado. A pressão estalava as juntas. Levou os dedos à fonte, apertou os olhos, seguiu com a ponta do indicador a linha dos lábios carnudos, alisou os cabelos, pressionou a nuca e, por fim, chorou. Chorou como não chorava há muito tempo. Durante alguns segundos, alguns minutos. Não sabia ao certo. Deixou-se levar. Cada lágrima descia pelo canto do olho carregando consigo um pedaço da dor que, enfim, transbordava.
O toque no ombro trouxe-a de volta à realidade mais depressa do que gostaria. Ficara tão concentrada em seus próprios questionamentos que não percebera os passos lentos do marido até ela. Virou-se assustada. Sentia-se tão só que, por um momento, esquecera-se dele. A vista estava embaçada, embora tentasse inutilmente limpar as lágrimas que ainda escorriam. Mal distinguia o rosto dele, mas por uma estranha razão, sentia que isso em nada tinha a ver com as lágrimas. Ele nada entendeu. Não sabia o que perguntar, o que dizer. Não sabia se havia meios de consolá-la. Na ausência de palavras, seguiu o que seus instintos mais adormecidos lhe ordenaram. Abraçou-a. A reação inicial dela foi de choque. Os braços em torno de si pareciam estranhos, desconhecidos. Contudo, lentamente, aconchegou-se. E foi naquele abraço apertado, na respiração lenta nos cabelos e no mais completo silêncio que ela encontrou o que procurara desde o início da noite. Ali, aninhada, em segurança, tornou a chorar. Ele nada disse, apenas a confortou. Ficaram em pé, unidos e imóveis por um instante que pareceu aos dois uma eternidade. Uma eternidade que, de bom grado, estavam dispostos a prolongar. Quando finalmente se olharam, a expressão de ambos era serena. Ele não demonstrava dúvida ou espanto, mas uma tranquilidade envolvente. O rosto dela brilhava. Não por causa das lágrimas derramadas, mas pela inusitada certeza que possuía. Não estava sozinha. Existia.
Ainda juntos, caminharam de volta para o quarto. O sol já aparecia por entre as nuvens, banhando as paredes da sala com seus primeiros raios. Eles não se importavam. Deitaram-se na cama abraçados. As testas coladas, pontas do nariz se tocando, as mãos entrelaçadas, os olhos pesados, mas ainda trocando confidências silenciosas.
Um som tomou a casa. O relógio avisava severo que era hora de levantar.
Sorriram.
E, sonolentos, adormeceram.
Selene
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