Desculpem-me a sinceridade, mas, sim. Ela tornou-se uma verdadeira obsessão, uma lenta e visceral psicose. Ela persegue meus pensamentos e sentimentos, perturba minha ordem lógica, distorce minhas percepções. Está sempre presente nos meus indesejáveis pesadelos, aparece em todos os lugares, em constante metamorfose, assumindo variadas formas. Está nas prateleiras dos meus armários e estantes, nas minhas roupas, nos espelhos e janelas. Ela é incrivelmente assustadora.
Acordo de manhã e vou à padaria. Compro alguns litros de leite, mas não apenas; vejo a Regina Duarte, pouco sorridente, na embalagem. Saio da padaria e vou ao jornaleiro. Compro os jornais, algumas revistas, mas nunca, nunca apenas; reencontro a Regina Duarte em todos os lugares, alegre e realizada nas capas, nas superfícies coloridas, nos pôsteres e nos anúncios. Ela está sempre estática, imóvel, o semblante lívido e estarrecedor.
A agressiva imagem não cessa a perseguição. Aparece nos postes, nos hidrantes e nas árvores – assim, contudo, bastante áspera. Ela nunca altera o semblante, parece indiferente ao medo, ao sofrimento, à felicidade. O sorriso é enganoso e artificial, o rosto incrivelmente irritante. Essa constante perturbação conseguiu, em pouquíssimo tempo, comprimir todas as minhas vontades e estímulos, conseguiu inflamar minhas tensões e, entretanto, congelar minhas expressões. Tornei-me, com profunda tristeza, espelho de Regina Duarte.
Passei a ignorar os rompantes da vida. Não tremo em situações arriscadas, não hesito frente aos diversos problemas do mundo, nunca. Adquiri imobilidade permanente e converti-me em estátua, em imagem, sem sorrir ou chorar. Minhas feições transformaram-se, eram sempre idênticas em todas as situações. Os dentes apareciam, os lábios levemente contorcidos, mas todas as experiências humanas simplesmente desapareceram.
Tentei chorar, mas não consegui. Os músculos do rosto pareciam entorpecidos. Tentei, ainda, demonstrar fraqueza ou desolação, tentei alertar amigos e familiares, chamá-los em socorro, mas não consegui. Regina Duarte corrompeu meus sentimentos e vontades, destruiu o sistema nervoso; não reagia a absolutamente nada. Imaginei-me doente, muito doente, mas não consegui expressar minha angústia aos médicos. Eles não conseguiam discernir o sofrimento, não conseguiam observar, nas minhas insinuações, problema algum.
E o tempo, infelizmente, passou. Envelheci muitos anos e tornei-me obscura; escondi-me das pessoas, dos amigos, das situações. Regina Duarte continuava estável entre minhas lamentações e fraquezas. Continuava latente – e imóvel – nos postes, nos hidrantes, nas paredes e nas árvores. Adquiri, enfim, a antiga aspereza dos troncos, mesmo jamais flexionando articulação alguma. Os pesadelos não conseguiram suplantar a degeneração física, mas, a essas alturas, não possuía reflexos ou lampejos. Estava completamente entregue, derrotado. Completamente consumido pela inércia dos antigos sonhos.
Não demorei a falecer, mas demoraram a perceber o falecimento. Confundiam-me com as estátuas, com as esfinges; impossível distinguir, entre a passagem do tempo e a loucura, nenhuma reação humana. Retirada e afastada, morri lentamente, sentindo a última felicidade possível. Os idosos, percorrendo longos e vitais percursos, aprendem a valorizar a retenção. Agora, cansados, gostam bastante da imobilidade. Regina Duarte sentia-se, finalmente, confortável.
Pato Donald
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