No dia 10 de janeiro de 1989, às 3 horas e 20 minutos, Ulisses foi amaldiçoado. Não foi um caso de feitiçaria antiga, magia negra ou alinhamento de planetas. A responsável foi uma jovem senhora que, após 8 horas de trabalho de parto, respirava ofegante. Sua expressão só poderia ser descrita como um misto de alívio, alegria e resquícios de anestesia. O bebê guinchava, mas eventualmente se acomodou nos seus braços. Havia também um jovem senhor na sala, que trocou um olhar cúmplice com a companheira e balbuciou: “Ulisses”. Manteriam o combinado. A mãe e o pai do bebê-que-viria-a-ser-registrado-como-Ulisses eram grandes fãs da literatura Universal. Em vez de pesquisarem nomes para o rebento em revistas femininas, o casal recorreu aos grandes heróis mitológicos. Pensaram em Aquiles, Perseu, Hércules, mas nenhum era tão grandioso quanto Ulisses. O homem que lutou por 10 anos e sofreu por mais 10 em sua viagem de retorno a Ítaca. Aquele que enfrentou o ciclope Polifemo e o deus Posêidon. O resultado não poderia ser mais desastroso. Para os pais, consequências amenas, como o rótulo de “esnobes” e olhares enviesados das mães de “Joãos” e “Pedros”. Já a criança foi incumbida de um fardo que poucos são capazes ou dignos de carregar.
Aos 5 anos, Ulisses foi apresentado à Ilíada e à Odisséia. Suas histórias antes de dormir tratavam de batalhas, honra, inteligência, astúcia e glória. Ulisses, em idade tão tenra, abraçou o urso de pelúcia e só pôde prever que estaria destinado a grandes feitos.
Ulisses era descrito pelos pais como dono de uma personalidade única e reservada. Um pequeno prodígio introspectivo. Já para as tias velhas da vizinhança, era o anti-social, antipático, alheio as suas doces demonstrações de carinho e apertos na bochecha. As demais crianças de sua idade simplesmente não o notavam, pois se encontravam demasiadamente ocupadas com seus balanços e gangorras e figurinhas e bonecos. Na verdade, Ulisses não era nada disso. Passava horas pensando nas histórias que seus pais contavam. Para ele, só poderia existir um Ulisses. Seu futuro já estava escrito. Os contos eram um presságio, uma descrição acurada do que estaria por vir…e o garoto esperava que chegasse. Não com o vigor e a ânsia de quem almeja algo. Era mais como estar na sala de espera de um dentista e não ter outra escolha, a não ser esperar. Enquanto isso, ocupava-se com revistas velhas.
Ulisses era apático. Não havia descrição melhor. Seu quarto era decorado sem grandes extravagâncias, seu armário, recheado pelas mesmas camisas pólo em diferentes tons pastéis. Dizer que não tinha muitos amigos implicaria em dizer que tinha algum. Ulisses nunca entendeu os interesses infantis e agora, aos 12 anos, pouco achava graça nas conversas que entreouvia dos seus colegas – pretensos adolescentes. Relações pessoais eram supervalorizadas.
Não era que o rapaz fosse um esnobe. Simplesmente nada daquilo o interessava. Tampouco faziam os livros, os filmes, a música, computadores ou pessoas. Ulisses vivia no recanto sombrio, distante do amor e do ódio, conhecido como indiferença. Invejava os que amavam, mas sentia uma vontade imensurável de odiar. Só podia concluir que um sentimento que envolvesse total desprezo por outro ser deveria ser grandioso. Grandioso como Ulisses. Mas o menino não conseguia sentir nada por ninguém. Estavam todos muito ocupados com seus cabelos, suas roupas, seus sorrisos artificiais e suas conversas sobre o tempo. Tudo aquilo era de um tédio mórbido.
Contudo, nada o perturbava mais do que sua figura. Nunca havia encontrado o menor sentido em sua existência. Em nenhum momento de seus 14 longos anos, que mais pareciam 80, teve sequer um lampejo. Deus, como Ulisses desejava ter 80! Seu problema nunca foi ser rejeitado por alguém, uma vítima de crianças cruéis que se divertiriam às custas de seu comportamento estranho. Não. Ulisses se rejeitava. Aquela não era a sua história. Devia tanto a si mesmo, devia tanto a Ulisses. Desejava, por vezes, ser como um daqueles meninos de olhos atormentados que trajavam preto e sentavam no fundo da sala, dedicando-se aos quadrinhos, história curtas e letras de rock melódico. Invejava sua insatisfação, seu tormento, suas almas de artistas inconformados. Antes fosse assim, isso o tornaria especial. E seria um ótimo início para a sua Odisséia. O jovem perseguido que se tornou…grandioso.
Mas Ulisses não tinha talentos. Não era bom em matemática, física, história ou geografia. Muito menos esportes ou artes. Também não era ruim. Só medíocre; não tinha derrotas ou vitórias. Era vazio de paixões, na verdade. Por vezes, tentou a religião e a política: assistia às pregações de senadores e aos discursos de pastores pela madrugada a fora. De nada adiantou. Seus ânimos não poderiam ser exaltados. Ulisses era o Nada. Se chamava Ulisses, mas tinha alma de João. De Ninguém. Impassível, insignificante e indiferente. E se ao menos se importasse o suficiente com isso, poderia encontrar aí seu grande sinal, sua epifania. Mas ele só podia esperar. O vazio existencial acabaria um dia. Só restaria o vazio, então. E Ulisses.
Seu pai trabalhava em um daqueles majestosos prédios no centro, que pareciam conter todo o resto da cidade em suas paredes espelhadas. O escritório ficava no 19º andar. Após a saída da escola, Ulisses e seus 16 anos passavam ali as tardes, andando em círculos e girando na cadeira executiva.
Aos 20 anos, se debatia entre estudos fracassados e empregos em lanchonetes. Em uma atitude nepotista, justificada pela mais genuína angústia, seu pai o levou para a empresa. Ulisses tinha como únicas responsabilidades organizar arquivos e servir cafés.
Em uma determinada tarde, cansou-se de seu cativeiro. Nele não havia Calipso, Cila, desafios ou promessas. Só a mesma inércia de uma vida à deriva. Tocou as janelas com as palmas abertas e jogou o peso do mirrado corpo sobre os dedos. Encostou a face no vidro frio e sorriu. Gostava da sensação. Era como deitar sobre o Nada. Se lembrou que a brisa lá fora estava agradável para um dia de verão e abriu a tranca. A janela se moveu sem ruídos. Na verdade, o vidro era tão translúcido que Ulisses mal notou alguma diferença, a não ser pelo vento delicado que sacudia as persianas. Subiu no parapeito com algum esforço e ficou na ponta de seus tênis sujos. Contemplou os cadarços e o mundo. Brincou de atravessar o vidro imaginário com pernas e mãos. Chutava e socava o Nada delicadamente, como se o desafiasse a acertá-lo de volta. Mas o Nada continuou impassível e Ulisses parou de lutar. Queria algo. Queria o novo. Queria desejar. Encarou novamente os tênis cinza, os telhados cinza, céu cinza e sentiu-se colorido. Ali, do alto do 19º andar, no parapeito de uma janela, Ulisses encontrou o momento mais lírico de sua insignificante existência. Não era bonito, não era feio. Não era triste, não era alegre. Assim como ele. Era Nada. E Ulisses flertou com o Nada. Não era mais impotente, não se sentia dominado. Era parte dele, queria se fundir à imensidão. Havia algo tão atraente e inspirador sobre o fim. Uma inegável poesia. Talvez por isso não encontrasse significado. Talvez não estivesse destinado a ser Grande, mas, sim, a ser Nada. Nosso Ulisses, para o choque e surpresa de Homero, decidiu não voltar para casa ao fim de sua Odisséia de 20 anos. E, então, voou.
Lúcia
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