Mário se mudou há 10 anos. Chegou vestido de maneira simples; jeans surrado e camiseta herdada da campanha política de 1997. Seus cadarços estavam desamarrados e seus pés eram arrastados em um compasso ritmado e monótono. Deixava tudo para trás e iniciava vida nova; seu tudo era pouco, mas ainda assim o desapego provocava estranheza. Não mais do que os olhares da vizinhança: intimidantes, desconfiados e apreensivos com a chegada do forasteiro. Mário escondeu o rosto e abaixou a aba do boné.
As paredes de concreto áspero da construção escondiam um microcosmo cujas engrenagens operavam de maneira curiosa. As janelas dos quartos emolduravam o pátio de grama maltratada, alguns bancos e uma única trave de futebol. Havia um certo equilíbrio harmônico, interrompido por freqüentes discussões entre desafetos. Durante os confrontos de seus vizinhos de porta, Mário preferia manter-se imparcial. Apoiava-se no peitoril da janela, dava três voltas no quarto e cantarolava um samba antigo para abafar os insultos e ameaças vazias. Sua resolução máxima era ser invisível.
Levava uma vida regrada, sem excessos de álcool, drogas, alegria e demais entorpecentes. Era fiel aos seus horários. Levantava, impreterivelmente, às 7h, vestia as roupas limpas recém-chegadas da lavanderia e ia trabalhar. Mário vivia de pequenos serviços de carpintaria. A remuneração era ridícula e insultuosa para a maioria dos servidores, mas ele gostava de ter uma razão para se levantar e vestir suas calças.
Logo após se mudar, conheceu Jorge e Pedro, com quem partilhava o interesse por baralho e cigarros. Passavam tempo sentados nos bancos, assistindo partidas de futebol de uma só trave. Jorge era um sujeito alto, de cabelos crespos. Havia uma seriedade solene em seus olhos pretos vazios. Carregava a foto de uma mocinha pálida no bolso da camisa; Mário a havia batizado secretamente de “Branca”. Em suas reuniões diárias, Jorge nunca mencionava Branca e Mário também nunca perguntava. Mesmo em 10 anos de convivência, não tinha intimidade para tal. Seus assuntos se resumiam a histórias despretensiosas do passado, esportes, fumo e mulheres. Mas não aquelas cujas fotos são carregadas nas carteiras; só as que exibiam seus dotes em capas de revistas. Já Pedro, negro de sorriso amarelo, gostava de vangloriar-se por seus trambiques e falcatruas. Era o mais velho dos três e morava lá há Deus-sabe-quanto-tempo.
Almoçavam juntos a comida de Dona Glória e Dona Lígia. As senhoras e seus ajudantes cozinhavam para uma boa quantidade de pessoas e não tinham muito tempo para preocupar-se com qualidade e variedade. A comida quase sempre era uma mistura irreconhecível de arroz, feijão e uma carne qualquer, batizada carinhosamente de “grude”. Mário devorava com gosto. Jorge mexia o garfo relutante. Pedro lambia o prato. Os três despediam-se com um aceno cúmplice e voltavam para seus quartos.
À noite, Mário jantava as sobras do almoço na mesma mesa. Fez isso durante 10 anos e, aquele dia, não era diferente. Um sinal tocou. Todos os homens ficaram de pé em um impulso coletivo. Mário olhou em volta, suspirou e balançou a cabeça pesadamente ao notar os homens vestidos de azul que orquestravam o grupo. Empurrou seu prato e lamentou o arroz intocado: gostaria de ter mais tempo. Sentiu uma pesada mão nas costas e levantou-se também. Cabeça baixa, semblante resignado. Foi escoltado até sua cela pelo guarda que lhe disse “boa noite” e fechou as grades.
As paredes de concreto áspero da construção escondiam um microcosmo cujas engrenagens operavam de maneira curiosa. As janelas dos quartos emolduravam o pátio de grama maltratada, alguns bancos e uma única trave de futebol. Havia um certo equilíbrio harmônico, interrompido por freqüentes discussões entre desafetos. Durante os confrontos de seus vizinhos de porta, Mário preferia manter-se imparcial. Apoiava-se no peitoril da janela, dava três voltas no quarto e cantarolava um samba antigo para abafar os insultos e ameaças vazias. Sua resolução máxima era ser invisível.
Levava uma vida regrada, sem excessos de álcool, drogas, alegria e demais entorpecentes. Era fiel aos seus horários. Levantava, impreterivelmente, às 7h, vestia as roupas limpas recém-chegadas da lavanderia e ia trabalhar. Mário vivia de pequenos serviços de carpintaria. A remuneração era ridícula e insultuosa para a maioria dos servidores, mas ele gostava de ter uma razão para se levantar e vestir suas calças.
Logo após se mudar, conheceu Jorge e Pedro, com quem partilhava o interesse por baralho e cigarros. Passavam tempo sentados nos bancos, assistindo partidas de futebol de uma só trave. Jorge era um sujeito alto, de cabelos crespos. Havia uma seriedade solene em seus olhos pretos vazios. Carregava a foto de uma mocinha pálida no bolso da camisa; Mário a havia batizado secretamente de “Branca”. Em suas reuniões diárias, Jorge nunca mencionava Branca e Mário também nunca perguntava. Mesmo em 10 anos de convivência, não tinha intimidade para tal. Seus assuntos se resumiam a histórias despretensiosas do passado, esportes, fumo e mulheres. Mas não aquelas cujas fotos são carregadas nas carteiras; só as que exibiam seus dotes em capas de revistas. Já Pedro, negro de sorriso amarelo, gostava de vangloriar-se por seus trambiques e falcatruas. Era o mais velho dos três e morava lá há Deus-sabe-quanto-tempo.
Almoçavam juntos a comida de Dona Glória e Dona Lígia. As senhoras e seus ajudantes cozinhavam para uma boa quantidade de pessoas e não tinham muito tempo para preocupar-se com qualidade e variedade. A comida quase sempre era uma mistura irreconhecível de arroz, feijão e uma carne qualquer, batizada carinhosamente de “grude”. Mário devorava com gosto. Jorge mexia o garfo relutante. Pedro lambia o prato. Os três despediam-se com um aceno cúmplice e voltavam para seus quartos.
À noite, Mário jantava as sobras do almoço na mesma mesa. Fez isso durante 10 anos e, aquele dia, não era diferente. Um sinal tocou. Todos os homens ficaram de pé em um impulso coletivo. Mário olhou em volta, suspirou e balançou a cabeça pesadamente ao notar os homens vestidos de azul que orquestravam o grupo. Empurrou seu prato e lamentou o arroz intocado: gostaria de ter mais tempo. Sentiu uma pesada mão nas costas e levantou-se também. Cabeça baixa, semblante resignado. Foi escoltado até sua cela pelo guarda que lhe disse “boa noite” e fechou as grades.
Lúcia
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